domingo, 19 de março de 2017

MEMÓRIA: QUANDO A IMPRENSA ESTAVA SOB O TERROR DA DITADURA E O TACÃO DA CENSURA.

O Correio da Manhã (RJ) foi o primeiro veículo da grande imprensa a manter uma posição firme contra o golpe militar. Tinha uma constelação de grandes jornalistas de esquerda, como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Antonio Callado, Jânio de Freitas, Sérgio Augusto, Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. Os artigos que Carlos Heitor Cony escreveu sobre os primeiros tempos da ditadura, sarcásticos e combativos, foram depois por ele reunidos em livro: O Ato [alusão aos Atos Institucionais baixados pela ditadura] e o fato.

Quase um nanico, A Tribuna da Imprensa havia sido fundada pelo corvo Carlos Lacerda mas, na ditadura, se tornou uma espécie de trincheira pessoal do combativo jornalista Hélio Fernandes, irmão do Millôr. Seus editoriais, cuspindo fogo contra os tiranos, ocupavam a capa inteira, ou deixavam um pequeno espaço para as manchetes; eram o maior, talvez único, atrativo  do matutino. Foi o dono de jornal mais intimidado e retaliado pelos militares.

Longe de serem de esquerda, O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde honraram o passado de resistência ao arbítrio: repetindo a postura adotada face à ditadura getulista, foram os dois veículos da grande imprensa que mais resistiram à censura do regime militar na primeira metade da década de 1970. 
Camões no trecho censurado
Enquanto os demais, que publicavam as matérias sem os trechos cortados e aceitavam substituir as matérias integralmente vetadas por outras, inofensivas, o Estadão preenchia esses espaços vagos com poesias e o Jornal da Tarde com receitas culinárias. Assim, os leitores podiam saber exatamente qual era o espaço ocupado pelos textos tesourados e até adivinhar a que se referiam.

Em meados da mesma década, a Folha de S. Paulo reuniu um elenco de primeira linha da esquerda: Paulo Francis, Alberto Dines, Samuel Wainer, Tarso de Castro, Plínio Marcos, Osvaldo Peralva, João Batista Natali e outros, com o trotskista Cláudio Abramo dirigindo a redação. Motivo: pouco antes da posse de Ernesto Geisel, o dono do jornal, Otávio Frias de Oliveira, foi aconselhado a assim proceder pelo estrategista do novo presidente, Golbery do Couto e Silva. Ele planejava a abertura e queria um contraponto à influência que O Estado de S. Paulo presumivelmente adquiriria.

Em termos jornalísticos, nunca a Folha teve ou teria depois tanta qualidade. O suplemento especial sobre os 60 anos da revolução soviética, p. ex., é inesquecível, com cada um dos grandes jornalistas tendo uma página inteira para preencher com seu artigo (o do Paulo Francis pode ser acessado aqui e aqui). E a página dominical Jornal dos jornais, do Dines, dava dicas valiosíssimas sobre os bastidores do regime, que serviam até para alertar os que deveriam se precaver contra perspectivas nefastas.

Tente achar a pegadinha...
Mas, uma crônica inconsequente do Lourenço Diaféria, dizendo que a estátua do Duque de Caxias só servia para os mendigos urinarem, deu pretexto para uma intervenção do II Exército, que exigiu a cabeça de Cláudio Abramo (deixou de ser diretor de redação e virou correspondente em Londres) e outros. A primavera da Folha terminou, com o jornal se tornando bem mais comedido sob a direção de Boris Casoy e, depois, do filho do patrão.

O semanário O pasquim foi o grande respiradouro da imprensa na virada dos anos 60 para os 70, com Paulo Francis pontificando nos comentários políticos e humoristas como o Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo e Henfil soltando suas farpas na área de costumes, além de fazerem também suas alusões ao arbítrio e à burrice institucionalizada. Outros destaques eram Ivan Lessa, Tarso de Castro e o guru da nova esquerda Luís Carlos Maciel. Havia, ainda, colaboradores de peso como Glauber Rocha, Chico Buarque, Caetano Veloso e Carlos Heitor Cony.

Anárquico, irreverente, difundindo o jeito carioca de ser num Brasil ainda provinciano, atraiu um público jovem e não necessariamente politizado. Chegou a vender mais de 200 mil exemplares, tiragem superior à de muitos veículos da grande imprensa, antes de sucumbir ao arbítrio oficial e ao terrorismo oficioso: imposições da censura, prisões de integrantes da equipe, atentados contra bancas de jornais que ousassem vendê-lo, etc. 
Um semanário corajoso

Finalmente, mais na linha da esquerda convencional, os alternativos OpiniãoMovimentoEmTempo e Coojornal foram outros respiradouros importantes, ao longo da década de 1970. Atingiam um público bem menor que o do Pasquim, de pessoas que já pertenciam à esquerda ou com ela simpatizavam, a maioria do meio estudantil.

Corajosamente, conseguiam passar a esse pequeno universo informações importantes que a grande imprensa preferia não revelar (ou era impedida de fazê-lo).

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