domingo, 15 de janeiro de 2017

A TRAGÉDIA DA UNIÃO SOVIÉTICA: DO SONHO AO PESADELO (1ª parte).

No dia do 60º aniversário da Revolução Soviética, a Folha de S. Paulo a ela dedicou
um caderno inteiro, oferecendo uma página a cada um, em corpo miúdo, para
grandes jornalistas e intelectuais progressistas a dissecarem livremente,
sob todos os aspectos. A melhor análise, na minha opinião, foi a de
Paulo Francis (leia mais sobre ele aqui), cujo mau fim de vida,
infelizmente, relegou ao quase esquecimento sua
contribuição importantíssima ao pensamento de esquerda nas
décadas de 1960 e 1970. Daí a iniciativa de publicar neste espaço seu
artigo de então, dando aos leitores a oportunidade de travarem contato com
um nível de profundidade política que o vento levou, espero que não para sempre...
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A REVOLUÇÃO BOLCHEVIQUE – 60 ANOS
DE LÊNIN, TROTSKI E STALIN
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Por Paulo Francis
Meu título causará surpresa em certos círculos, pela inclusão do nome de Trotski, afinal desalojado do poder em 1925, mas ela será explicada. Trotski é, na minha opinião, o autor intelectual da Revolução Soviética, o que ele próprio nega, modestamente, na sua monumental obra A revolução russa, atribuindo a honra a Lênin e às massas. 

E Trotski foi o principal inspirador de Stalin, o homem que o destruiu, um paradoxo aparente, intolerável para leninistas, trotskistas e stalinistas. Tenho muito a explicar, reconheço.

Antes, porém, eu diria que a Revolução Soviética é um dos três acontecimentos decisivos no que chamamos pitorescamente de civilização cristã, na cultura (Kultur) que emergiu do Império Romano a oeste de  Constantinopla, ou seja, a cultura ocidental. 

O primeiro é a Reforma de Lutero, que destroçou a coerência ideológica do cristianismo. O segundo é a Revolução Francesa, a partir de 1791, como decorrência do governo de Robespierre e Saint-Just (que me lembram extraordinária e respectivamente Lênin e Trotski). A Revolução Soviética é o mais profundo e cismático. 
A Reforma é um subproduto do nascimento do nacionalismo e do capitalismo. A Revolução Francesa eliminou as últimas travas feudais à explosão capitalista e liberal, mas é argumentável que a beneficiária central, a burguesia, já controlava os meios de produção quando tomou o poder no século XVI, na esteira da Revolução Industrial, que a nobreza e o clero se recusavam obstinadamente a aceitar como determinante do futuro, que está conosco até hoje, um decadente presente.

A Revolução Soviética surgiu do nada. Em nação alguma do mundo existia a condição sine qua non da tomada do poder pelo proletariado, que Marx e Engels haviam previsto e postulado em extensas análises. E, especificamente, haviam vetado países sem uma economia de abundância, industrial, sem uma numerosa classe operária urbana capaz de administrar os meios de produção. 

A Rússia de 1917 era semifeudal, possuía quando muito 3 milhões de operários, de uma população de 85% de camponeses, habituados secularmente a uma férrea autocracia lastreada espiritualmente pela reacionaríssima Igreja Ortodoxa. 

Marx achava possível revoluções socialistas na Alemanha, Inglaterra e EUA, que ele e Engels começavam a estudar, antes de morrer. Na Rússia, por escrito, decretaram um inequívoco nyet. 
Domingo sangrento (1905): tropas do czar massacram manifestantes.

Considerariam a tese de Mao Tsé-tung ou a do líder vietnamita Ho Chi Minh grotesqueries, porque se basearam no campesinato à exclusão de um inexistente operariado urbano. Logo, a frase – e clichê – revolução marxista, muito usada pela nossa imprensa popular e por polemistas anticomunistas, deveria ser arquivada de vez. É um mito. Na hipótese mais caridosa, permanece inédita.

Lênin, ao contrário da lenda, aceitava a análise de Marx e Engels. Na sua luta contra os mencheviques, o centro da discórdia não era, não importa o que diga a propaganda comunista subsequente, que os bolcheviques pretendiam instalar o comunismo na Rússia e que os mencheviques desejavam primeiramente que o país passasse por uma fase capitalista. 

A briga era entre a concepção leninista do partido único, de revolucionários profissionais, a vanguarda, e a visão menchevique de um partido aberto a todos que simpatizassem com ideias socialistas. O chamado eurocomunismo de hoje é o retorno do reprimido menchevique à arena polêmica do comunismo.

Trotski favorecia os mencheviques no debate com Lênin, prevendo, corretamente, que a vanguarda levaria a uma ditadura, incompatível com o socialismo. Discordava, porém, dos grupos de Lênin e Martov (o líder menchevique) quanto à possibilidade de revoluções comunistas no que hoje chamaríamos de nações subdesenvolvidas. 
Estação Finlândia: a famosa volta de Lênin  à Rússia em 1917.

Em 1905, ele e Parvus (brilhante teórico que depois se autodegradou, servindo ao Kaiser na 1ª Guerra Mundial) desenvolveram a tese da revolução permanente, que, de relevante ao tema deste artigo, propõe que uma revolução socialista em país tão atrasado como a Rússia seria o estopim que conflagraria todo o mundo desenvolvido, levantando as classes operárias dos ditos, que, no poder, iriam em socorro da atrasada Rússia e, em pouco tempo, unidas, estabeleceriam o socialismo em escala mundial.

Em 1905, isso sugeria quimera ou, no máximo, especulação interessante, típica do brilho inegável de Trotski. Em 1917, porém, com as principais nações capitalistas da Europa arrasadas pela guerra, com levantes de marinheiros alemães e soldados franceses em reação ao morticínio, Lênin começou a dar crédito a Trotski. 

Em todos os livros contemporâneos dignos de créditos (o do menchevique Sukhanov é o melhor), quando Lênin desembarcou na Estação Finlândia, em Petrogrado, cuspindo fogo, o comentário dos outros bolcheviques foi que Lênin se transformara em trotskista. Os líderes bolcheviques, Stálin, Sverdlov, Kamenev e Zinoviev, estavam na linha marxista tradicional, de colaborar com os partidos progressistas que emergiram depois da queda do tzarismo em fevereiro, objetivando a entrada da Rússia na revolução capitalista.

Se Lênin se tornou trotskista, Trotski se converteu em leninista, isto é, aceitou os direitos à exclusividade revolucionária dos bolcheviques. Desse acordo nasceu a liderança real da Revolução Soviética. 
Kamenev e Zinoviev, os fura-greves da revolução.

Vale notar que, até julho de 1917, a maioria do Comitê Central do Partido Bolchevique ainda estava contra a tese de tomada imediata do poder proposta por Lênin e Trotski. Foi uma mudança no comportamento das massas bolcheviques, que se insurgiram nas ruas, que convenceu o resto da liderança comunista. 

Ainda assim, à última hora, Kamenev e Zinoviev, bolcheviques da velha guarda, alcaguetaram o plano de insurreição de Lênin e Trotski, o que levou Lênin a chamá-los de furadores de greve e a querer expulsá-los do Partido, do que foram salvos pela rara concordância e união de Trotski e Stálin. A tese de Trotski pressupunha que o Outubro soviético fosse seguido da revolução alemã.

Isso se tornou axiomático entre os bolcheviques. Ninguém acreditava que a precária Revolução Soviética se mantivesse em pé sozinha. 

Bem, em 1918, o levante spartakista de Rosa Luxemburgo e Karl Leibknecht fracassou na Alemanha, traído pelos sociais-democratas, aliados ao Exército imperial. Em 1923, nova tentativa redundou em semelhante fracasso. 

Até levantes em países subdesenvolvidos (Hungria) deram em nada. Em 1920, a tentativa do Exército Vermelho de levar a revolução sob ponta de baioneta à Polônia terminou em derrota. Data desse período o dilema da liderança bolchevique que terminaria resolvido no stalinismo.
Gênio militar de Trotski salvou a revolução

Lênin e Trotski subestimaram a capacidade do capitalismo vigoroso e intocado pela guerra dos EUA de revitalizar a decadente Europa burguesa. Não esperavam que os imperialismos pobres da Inglaterra e França tivessem forças de organizar uma intervenção na Rússia que terminaria envolvendo 22 países, acabando de arrasar o país, já devastado pela Guerra de 1914 e por viver na idade da pedra. 


Essa guerra civil, cujo cerne era a própria reação interna, custou a vida de 13 milhões de pessoas. Foi a guerra civil mais violenta da história e, no entanto, existe um mínimo de análise e de compreensão sobre o efeito que teve na psique dos bolcheviques. 

Atrocidades foram cometidas de lado a lado, mas está incontrovertivelmente provado que quem as iniciou foi a Legião Tchecoslovaca, a ponta de lança do intervencionismo de Clemenceau e de Lloyd George, os dirigentes da França e Inglaterra. 

Em julho de 1918, os bolcheviques dominavam o equivalente a 10% da URSS atual. Uma social-revolucionária, Dora Kaplan, tentou matar Lênin. Antes, os comunistas se haviam magnânimos. Soltavam generais tzaristas sob promessa de que não pegariam armas contra a revolução (não faziam outra coisa). 

Aboliram, para escândalo de Lênin, cuja memória das gentilezas da Comuna de Paris era vívida, a pena de morte. Pensavam conciliar com todos os partidos, desde que reconhecessem a supremacia bolchevique. 
Stalin acumulava poder nos escalões burocráticos do partido

Pós-Dora Kaplan, Lênin chamou Félix Dzerzhinsky, revolucionário polonês, discípulo de Rosa Luxemburgo, cuja ambição professa era dirigir um comissariado de bem-estar da infância, e deu-lhe plenos poderes de combate à contrarrevolução, via a famosa Cheka, a antecessora da atual KGBNuma noite, conta Victor Serge, a Cheka matou 150 mil pessoas em Petrogrado, o sangue jorrava como água pelas ruas em direção aos bueiros. Começara o terror vermelho. 

Trotski erigiu do nada o Exército Vermelho e, revelando gênio militar que seus escritos sobre o tema já deixavam antever, derrotou a reação interna e os intervencionistas. A batalha decisiva foi em Leningrado, 1919, em que mulheres comunistas atacavam tanques usando facas de cozinha. 

revolução triunfara, embora a guerra civil só terminasse oficialmente em 1922. Triunfara, porém, sobre o quê? Em 1921, isolada do mundo, devastada internamente, com fome e canibalismo em todos os cantos, à URSS restava o partido único de Lênin, governando massas exaustas e hostis, que não entendiam as sofisticadas esperanças de uma liderança que sonhava ainda com a revolução mundial. (continua)

4 comentários:

SF disse...

Esperando a continação.

Anônimo disse...

Paulo Francis era extremamente inteligente, assim como você, meu amigo Celso.

Brilhante o texto do Paulo Francis, mas após os anos 90 já era um reacionário dos mais radicais.

Não esqueço dele declarando apoio ao Fernando Collor em 1989 e depois, no final dos anos 90 escrevendo artigos preconceituoso e ofensivos contra nordestinos e o povo africano.

Acho que ele se tornou um capitalista radical na fase final da vida. alguns artigos dele eu já li nesta linha.

Parabéns

me impressionou muito esta entrevista dele:
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/35/francis/entrevistados/paulo_francis_1994.htm


Ismar Souza
Salvador-Bahia

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Olá, Celsão, muito interessantes esses escritos do Paulo Francis. Há somente um pequenino equívoco na postagem: o indivíduo que se vê na fotografia, com Stálin e Lênin, não é Trotsky. É Mikhail Kalinin.

celsolungaretti disse...

Valeu, Eduardo, acabo de consertar!

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