segunda-feira, 21 de maio de 2018

TRIBUTO ÀS CHUTEIRAS IMORTAIS – 2: O HERÓI IMPROVÁVEL QUE SALVOU O BRASIL, CARREGANDO O ESCRETE NAS COSTAS (1962)

"Vocês vão ver como é
Didi, Garrincha e Pelé
Dando seu baile de bola
Quando eles pegam no couro
Nosso escrete de ouro
Mostra o que é nossa escola

Quando a partida esquentar
E Vavá de calcanhar
Entregar a pelota a Mané
É Mané Garrincha, Didi,
Didi diz 'é por aqui'
Aí vem o gol do Pelé"
(B. Marques/D. Bezerra)


O Brasil era o favorito do Mundial 1962, no Chile, com seu grupo de jogadores que pouco havia mudado desde 1958, quando deslumbrou o Planeta Bola. A principal alteração estava no banco, com o discreto Aymoré Moreira substituindo o adoentado Vicente Feola.

Mas, a contusão de Pelé, logo na segunda partida, foi um balde de água fria no nosso ânimo. 
Antes, a Seleção aplicara protocolares 2x0 num México cujo único destaque era o goleiro Carbajal, por já estar disputando seu quarto Mundial consecutivo (acabaria fechando a conta em cinco).

Contra a Tchecoslováquia, o rei tentou um chute de fora da área, que foi à trave enquanto ele ia ao chão, abatido por um estiramento muscular.

A aplicação tática do adversário fez escassearem nossas oportunidades de gol e os dois melhores arremates brasileiros morreram nos postes. 0x0.


O Brasil entrou em campo no jogo seguinte, contra a Espanha, seriamente ameaçado: uma derrota provavelmente o desclassificaria e um empate o faria enfrentar um adversário pior na fase seguinte.
Pelé deixa o campo contundido, ainda no 1º tempo.

Foi um jogo épico, contra um adversário muito forte e que contava com o mito Puskas (húngaro que, após ser o grande destaque da Copa de 1954, assumira a cidadania espanhola).

Chutando da meia lua, Adelardo colocou a Espanha na frente.

Amarildo, o substituto de Pelé, empatou, aproveitando centro rasteiro de Zagallo.


Gylmar salvou o Brasil fazendo uma defesa extraordinária, depois de rebater um cruzamento, dividindo a bola com um avante espanhol. O grande Gento pegou o rebote dentro da área e desferiu um arremate mortal para o gol, com Gylmar caído. Mas o goleiraço, num lance de puro reflexo, conseguiu erguer os braços e espalmar.


Parêntesis 1: Gento, além de ser um fora de série, tinha muito caráter. Certa vez, incumbido de cobrar um pênalti inexistente para o Real Madrid, chutou na direção da bandeira de escanteio, recusando-se a tirar proveito do erro da arbitragem.

Parêntesis 2: também errou a arbitragem de Brasil x Espanha, ao não assinalar um pênalti cometido por Nilton Santos. Marcou fora da área a falta ocorrida dentro.
Imagens restauradas de Brasil x Espanha: jogaço!

O chamado enciclopédia do futebol usou de malandragem, dando um passo dissimulado à frente para confundir o juiz, que estava vindo conferir de perto o local da infração.

A Espanha reclamou outro pênalti, num lance que naquele tempo os árbitros consideravam bola na mão e não mão na bola (a penalidade máxima só se caracterizava quando o toque havia sido intencional). E, no finalzinho da partida, houve mais um, claríssimo, em favor do Brasil, também ignorado.

Parêntesis 3: então com 11 anos, eu não entendia por que o placar do estádio de Viña del Mar estampava a frase porque nada tenemos, lo haremos todo.

Só bem mais tarde vim a saber que um forte terremoto destruíra a infraestrutura futebolística do Chile, dois anos antes do Mundial, mas o grande dirigente Carlos Dittborn conseguira evitar a mudança de sede, pronunciando então tal frase, que motivou sua gente a, com um esforço descomunal, conseguir reerguer tudo em tempo hábil.
Brasil 3x1 Inglaterra, com narração do saudoso Fiori Giglioti (1º tempo)

Parêntesis 4: tratou-se da primeira Copa do Mundo cujas partidas foram integralmente exibidas no Brasil, em teipe. Passavam na noite do dia seguinte e um locutor agradecia a gentileza do comandante fulano, piloto da Varig, que havia trazido a fita no seu voo.
Pelé fora, Garrincha chamou a responsabilidade para si

As duas emissoras que transmitiam futebol, a Record e a Tupi, optaram pelo revezamento: cada equipe se incumbia da locução e comentários de um tempo da partida.

Então, era o chatíssimo Walter Abrão quem resmungava, no finalzinho da partida contra a Espanha, quando Garrincha não atava nem desatava na ponta: “É muito egoísmo, ficar prendendo a bola numa hora destas, em vez de servir um companheiro!”.

Foi a maior queimada de língua que vi na vida. Em mais uma jogada genial daquele que vinha sendo desde o início o melhor atacante brasileiro, Mané se livrou dos adversários, atraiu toda a marcação (inclusive o goleiro) e deu um centro milimétrico em direção à segunda trave, onde Amarildo, desmarcado, esperava para cabecear. O possesso nem precisou pular. 2x1

Apesar do folclore, Garrincha era simplório, mas estava longe de ser um desmiolado. Tanto que, quando Pelé se contundiu, a ficha logo caiu para o Mané: era a ele que competia liderar o ataque brasileiro no restante do Mundial.

Então, às suas jogadas desconcertantes mas nem sempre objetivas, ele acrescentou uma inusitada dose de pragmatismo: passou a priorizar o gol.
Brasil 3x1 Inglaterra, com narração de Fiori Giglioti (2º tempo)

Nas quartas-de-final contra a Inglaterra, fez um cabeceando do meio da área e outro, sensacional, chutando da intermediária, quase uma folha seca ao estilo de Didi (só que, com a bola rolando, é bem mais difícil!). 3x1.

Na semifinal contra os anfitriões, o inverossímil: pegou um rebote na entrada da área e com a perna esquerda, que geralmente só lhe servia de apoio, acertou um chute perfeito, no ângulo. [Ele fazia suas diabruras com a perna direita, seis centímetros mais curta!]

De quebra, outro gol de cabeça, quase igual ao da partida anterior. E o Brasil despachou o Chile: 4x2.


Parêntesis 5: o Mané foi expulso no fim da semifinal, mas o jeitinho brasileiro fez a diferença nos bastidores. O árbitro, providencialmente (ou premeditadamente?) não entregou a súmula em tempo e Garrincha pôde disputar a final.
Brasil 4x2 Chile: imagens restauradas dos gols.

Assim, o Brasil levou a campo sua força máxima, com exceção do contundido Pelé: Gilmar; Djalma Santos, Mauro, Zózimo e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Amarildo e Zagallo.

A Tchecoslováquia, com seu bem 
montado esquema de formiguinhas, foi o adversário – mas a sorte, desta vez, lhe seria madrasta.

Os meio-campistas Masopust (0x1) e Zito (2x1), surgindo como elementos-surpresa, marcaram.

Amarildo, tentando um cruzamento da linha de fundo, viu, com seu espanto transparecendo no olhar, a bola enganar o goleiro Schroiff, que se posicionara para interceptar o centro. Nem ele acreditou no gol  (1x1) que fizera.
E o empolgante Djalma Santos alçou a bola despretensiosamente para a área. O pobre Schroiff, melhor arqueiro da Copa, estava num dia pra lá de infeliz. Ofuscado pelo sol, soltou infantilmente a pelota no pé de Vavá, que não perdoou. 3x1.

Parêntesis 6: chefiando a delegação, o empresário paulista Paulo Machado de Carvalho foi fundamental para as conquistas de 1958 e 62.

Sob a conturbada liderança dos cartolas cariocas, o Brasil dera vexame em 1950, quando os dirigentes não só entraram no clima do já ganhou!, como deixaram que ele contagiasse os jogadores. 

Chegaram ao cúmulo de recomendarem ao limitado e faltoso zagueiro Bigode que não abrisse a caixa de ferramentas na final, pois o mundo inteiro estaria olhando. Com Bigode domesticado, o hábil ponta Gighia fez a festa, levando o Uruguai à vitória.

E deu novo vexame em 1954, perdendo não só o jogo, mas também a esportiva, contra a Hungria, que era realmente melhor.

Aí assumiu Paulo Machado de Carvalho, com um enfoque mais profissional do futebol e uma habilidade imensa no quesito motivação dos jogadores.
O marechal: um raro dirigente estimado pelos jogadores

P. ex.: ao ficar sabendo que Didi estava apático e macambúzio porque sentia falta da caninha habitual, o marechal o levou ao bar e, para surpresa do jogador, pediu duas pingas.

Didi hesitou, mas o velho disse: “Comigo você pode. Toma!”.

Copo vazio, ele foi além: “Beba a minha também!”.

Finalmente: “Agora, vá à luta e arrebenta! Nós precisamos de você”. Assim era o homem.

Então, não foi surpresa que, depois de criticadíssimo pela equipe esportiva da rádio Bandeirantes (SP) ao longo de toda a campanha, ele desse o troco quando um pouco perspicaz repórter da emissora o foi entrevistar no vestiário festivo da conquista do bi.

O comandante vitorioso só disparou uma frase: “Engoliu mais essa, Pedro Luís?”

O veterano locutor discursou durante minutos, criticando a mesquinhez de quem aproveitava um momento de júbilo nacional para vinganças pessoais.

Em vão: tinha ido a nocaute e, como os pugilistas sonados, não se dera conta.

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