sexta-feira, 30 de março de 2018

PARA OS SENHORES DO MUNDO, A BEM-AVENTURANÇA É SEMPRE SUBVERSIVA

O estraga-matinês
Quando eu era criança, na 6ª Feira Santa os cinemas de bairro só passavam filmes religiosos toscos, de um primarismo atroz, por serem os que lhes custavam menos.

Um se chamava 
O Mártir do Calvário. Outro, Vida, Paixão e Morte do Nosso Senhor Jesus Cristo. Devem ter existido mais de que eu não esteja recordando.

As cópias eram sempre as mesmas, já que não compensava fazer novas para aproveitá-las só uma vez por ano. Estavam em petição de miséria,  tremidas, puladas, chuviscadas e embaçadas.

Os cinemas  pulgueiros  nem cogitavam exibir uma superprodução como Os Dez Mandamentos. Não só pela diferença no preço, mas também porque, com seus 220 minutos mais o intervalo entre a primeira e a segunda partes, ficaria restrito a duas sessões. Péssimo negócio.

O certo é que, na minha infância, eu me tornei avesso a filmes bíblicos. Além de não me interessarem, impediam que eu aproveitasse a folga escolar como gostava, vendo bangue-bangues, comédias, ficção-científica, capa-e-espada, etc. De que valia um feriado sem matinê?

Lá pelos 17 anos, no começo do meu engajamento político, assisti com algum interesse à visão marxista da trajetória de Cristo: O Evangelho Segundo São Mateus (1964, d. Pier Paolo Pasolini). Mas, não me deslumbrei. Muito árido, parecendo mais teatro antigão do que cinema.

Em 1973, entretanto, Jesus Christ Superstar me atingiu como um raio.
Os Dez Mandamentos, versão 1956: longo demais.

Transposição para o cinema da opera-rock de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, era, em primeiro lugar, belíssimo, com ótimas coreografias, músicas marcantes e o verdadeiro achado de filmá-lo em ruínas e desertos de Israel.

Norman Jewison, o diretor, tem grandes filmes no seu currículo, como A Mesa do Diabo (1965), No Calor da Noite (1967), Rollerball - Os Gladiadores do Futuro (1975), A História de um Soldado (1984) e Hurricane (1999). Faz mais o gênero artesão, porém com muito bom gosto e sensibilidade.

O que realmente me fez a cabeça foram as letras pra lá de inteligentes de Tim Rice, apropriadíssimas para cada situação enfocada (o filme mostra os últimos sete dias de Cristo), além de proporem um enfoque absolutamente novo e fascinante: os personagens principais do drama bíblico são mostrados como vítimas de uma armadilha do destino, forçados a agir contra suas propensões e preferências.

Cristo segue as ordens de Deus, mas gostaria mesmo é de continuar vivo. Sua relutância e temor do sacrifício se ressalta, principalmente, na sequência do Gethsemane, quando ele pergunta ao Criador por que, afinal, deve morrer. No final do tema musical, pede que, se essa é a vontade de Deus, então que o mate e o pregue na cruz... mas, o faça depressa, antes que ele mude de ideia.
Jesus Christ Superstar: personagens bíblicos se debatem numa armadilha do destino 
Pilatos não vê crime em Cristo e tenta salvá-lo de todas as maneiras, só cedendo diante da fúria da multidão, que ameaça denunciá-lo a César.

Judas não quer ser delator, mas teme uma retaliação terrível de Roma sobre seu povo, caso as pregações de Cristo prossigam. O episódio da expulsão dos vendilhões do templo o leva a crer que a situação foge ao controle e terminará num banho de sangue. É quando decide entregar Cristo aos inimigos.

Caifás age para preservar a autoridade dos sacerdotes, igualmente temendo que Roma intervenha caso eles já não consigam mais manter dócil o povo.

Enfim, nunca me agradou a visão de que o drama bíblico já fora inteirinho escrito por um roteirista das alturas e era representado mecanicamente pelos homens, obedecendo à vontade de um Deus que não admitiria questionamentos. 
Traição de Judas revisitada: ele queria evitar um massacre 

Colocada a coisa desta forma, tornavam-se todos títeres, Cristo inclusive. E títeres não me provocam empatia.

Ao humanizar esses personagens, destacando o sofrimento que lhes causava o papel para o qual estavam sendo empurrados, a ópera-rock e o filme apresentaram o drama bíblico como uma tragédia nos moldes gregos, em que homens imbuídos até de boas intenções são arrastados inapelavelmente para desfechos terríveis e injustos.

Esse evangelho na ótica da era hippie continua sendo o melhor de todos, pelo menos para quem, como eu, quer extasiar-se com a arte e não venerar aquilo que é tido como sagrado.  

Vale acrescentar que os apóstolos e os hippies tinham mesmo muito em comum: sua mensagem de paz e amor contrariava os desígnios dos poderosos e era por eles duramente combatida – já que, para os senhores do mundo, a bem-aventurança é sempre subversiva.

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