sábado, 28 de outubro de 2017

OUTRA PRECIOSIDADE DO BAÚ DO APOLLO: "CRÔNICA DA VOVÓ DO MATO".

Tinha trem de madeira puxado pela Maria Fumaça. Era tudo mato. Uma casinha aqui outra ali,  alguns índios, tanto tempo faz. Árvores para seis homens abraçar, tanto cheiro  de capim.

Lá vivia minha  vovó do mato, mãe da minha mãe, assim chamada porque no mato morava.     

Era na antiga e fabulosa Vila Ré, assim chamada porque foi o italiano Giacomo Ré que a instituiu, no final do século 19, inicialmente 90 hectares de matas entre a antiga Estrada de Ferro Central do Brasil e o córrego Tanquinho. 

A mãe do meu pai era a vovó do Bixiga [apelido da Bela Vista, um tradicional bairro italiano da capital paulistana, eternizado nas canções de Adoniran Barbosa], assim chamada porque no Bixiga morava.  

O vovô do Bixiga era dono de fábrica de chapéus quando chapéus eram usados por todos os homens e todas as mulheres. Haja chapéu, daí o seu sucesso. 

O vovô do mato era carregador de malas na estação do Brás. Fortão, bonitão, cabeleira escura gigante, voz de trovão, pobretão, desejado por um punhado mulheres que por lá mourejavam. Já vi  moço ali, moça acolá,  com seu sobrenome. Não quer dizer nada. Mas como são parecidos com ele! 
A Vila Ré de meio século atrás

vovô do Bixiga, e também a vovó do mesmo apelido nasceram no norte da Itália. O ricaço falava até árabe.

O vovô do mato e a vovó do mato, um da aldeia Valelungo, na Sicília, outro de Nápoles, nem italiano falavam, muito menos durante a 2ª guerra, tempo em que  não se podia falar italiano, alemão e japonês. Ainda cheguei a falar um pouco de italiano quando criança mas ninguém mais falou italiano comigo e eu já esqueci. 

Então. 

A chácara do vovô do mato e da vovó do mato era grande, recheada de árvores, caqui, pêssego, pera, goiaba, uva e um cachorrão bobão que a gente pedia para tomar cuidado para não pisar nele. Galinhas e porquinhos se atropelavam nos pés da nossa gente.

A morada do vovô e da vovó do Bixiga era um casarão de janelas enormes. Um palácio. Os  vidros coloridos pintavam de verde, azul, vermelho,  amarelo, os pratos de risoto nos almoços de domingo. 

O vovô  e a vovó do Bixiga tiveram 24 filhos.

O vovô e a vovó do mato tiveram 17.

O vovô e a vovó do Bixiga eram católicos.

vovó do mato era evangélica. 

O vovô do mato reclamou uma vez na saída de uma sessão espírita: sempre comigo se pega esse pai Benedito! Que tipo de bronca será que o pai Benedito dava nele?
O Bixiga de quase um século atrás

A eletricidade não havia chegado na chácara. Eu pequenininho, a vovó do mato gordinha linda linda me pegava pela mão para sentar ao lado dela. 

Na mesa rústica, um lampião, um velho despertador barulhento e a Bíblia, espaço suficiente para o desfile dos exércitos de Deus e fogueiras e raios e espadas sobre os pecadores. 

O vovô do mato chegou uma noite na chácara com uma de suas amantes e ordenou: sirva comida a ela. Hoje ela vai dormir aqui. A vovó do mato pegou a moça toda enfeitada pela mão e a fez sentar à  mesma mesa com o velho despertador barulhento, o lampião e a Bíblia.      

Abriu a Bíblia,  falou do amor de Jesus pela humanidade, da mulher que ele não condenou, da sua recomendação de parar com aquela vida. Suas palavras despejavam amor. 

Na mesma Bíblia, lembrei agora, tem uma passagem interessante com conselhos para o homem e para a mulher acerca de uniões conjugais neste vale de lágrimas. 

Para o homem: alegra-te com a mulher da tua mocidade, corsa de amores, gazela graciosa. Por que razão te envolverias com outras? 

O vovô do mato viveu essas duas situações. A fase do usufruto da gazela graciosa corsa de amores da vovó do mato rendeu os 17 filhos mencionados acima. 

Para a mulher: seja submissa ao teu marido.

Diz minha parentada  que aquela mulher enfeitada se converteu e passou a frequentar a igreja que a própria vovó do mato havia fundado. A valer a verdade, ela deve ter dado o fora no vovô do mato.  

Fico pensando. A minha santa vovó do mato era de outro planeta, embora fosse mulher, mulher, mulher, mulher, meu Deus do céu!  O que outra mulher teria feito no lugar dela? O que todas as outras mulheres fariam no lugar dela? 

Derramariam lágrimas amargas, certamente, e devorariam canções, talvez, que falam de amores traídos, não correspondidos, donzelas e cavalheiros separados sei lá eu por que, cargas d'água! Desculpem, sei sim. É a danada da poligamia, invenção da natureza, sai pra lá monogamia, invenção humana.

Não me foi dado a conhecer com qual das duas o vovô do mato dormiu naquela noite, na cama iluminada a lampião. (por Apollo Natali)

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