quinta-feira, 18 de maio de 2017

UMA IDOSA LEVADA À MORTE, UMA FAMÍLIA NA PENÚRIA: SÃO AS CONSEQUÊNCIAS DA INJUSTIÇA INSTITUCIONALIZADA.

"Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade 
tanto horror perante os céus?"
(Castro Alves)
.
Cristiane sempre fora uma pessoa solidária e não haveria de ser justamente agora, no alto dos seus 70 anos, que deixaria de socorrer os seus nos momentos de grande necessidade. 

Era viúva de um aposentado que trabalhara a vida inteira como estivador no porto cearense do Mucuripe e vivia da pensão deixada pelo seu marido, que, apesar de ter contribuído para o Instituto Nacional de Seguridade Social com base em cinco salários-mínimos, agora só recebia o equivalente a pouco mais de dois salários.

Vivia com esta aposentadoria mais uns extras que obtinha vendendo docinhos caseiros. Não pagava aluguel, pois morava em casas própria, que seu falecido marido havia conseguido comprar pelo antigo Sistema Financeiro de Habitação, já quitada há muitos anos e com muito sacrifício. 

Tinha um filho excepcional de 44 anos, o Luizito, que nascera com dificuldades de coordenação motora e debilidade mental; também uma parenta idosa de 75 anos, que lhe ajudava nos afazeres domésticos e na fabricação dos docinhos.
Apesar de dispor de parcos recursos para a sobrevivência e a compra dos remédios que regulavam a sua pressão arterial, conseguia manter-se viva.    

Certo dia um irmão mais novo, que contava 52 anos e era apelidado de Dudu, pediu-lhe que fosse fiadora de um contrato de aluguel, pois ainda não conseguira realizar o sonho da casa própria, como milhões de brasileiros. Ao longo da vida, Dudu sempre tivera comportamento conservador, defendendo o direito à propriedade, sem nunca, entretanto, ter conseguido obtê-la com o seu salário de motorista de ônibus.

Cristiane prontamente acedeu, preenchendo um cadastro fornecido pela imobiliária tendo de especificar se era proprietária de imóvel. Tratava-se de uma condição sine qua non para a imobiliária aceitar a fiança; apesar de não constar do cadastro, tal exigência havia sido comunicada verbalmente ao pretendente a inquilino. Diante da resposta afirmativa, a imobiliária pediu uma cópia do registro imobiliário da propriedade que comprovasse tal afirmação.

Cristiane, que guardava tal registro trancado a sete chaves, hesitou em expor o documento, mas acabou concordando em fornecer cópia autenticada do mesmo. Assim, a imobiliária aprovou a locação do imóvel, ainda que houvesse restrições creditícias ao nome do inquilino, pois seu nome constava do SPC e Serasa. Cristiane assinou o contrato de locação como fiadora e o seu irmão pôde receber as chaves da casa alugada.

Durante quatro meses Dudu pagou o aluguel pontualmente em dia. No quinto mês após a locação, entretanto, com a redução do número de motoristas e de ônibus em circulação (fosse pelos assaltos aos passageiros e trocadores, por tais coletivos serem constantemente incendiados ou pelo interesse das empresas em auferir lucros com a superlotação), veio a demissão do Dudu, para desespero seu e de sua família de mulher e três filhos adolescentes. 

Os valores recebidos em função da rescisão trabalhista e do seguro-desemprego não durariam muito.

Dudu, que sempre fora considerado como bom motorista, procurou emprego na sua área, mas observou que nas portas das garagens sempre havia filas de motoristas desempregados; pior, comentava-se que brevemente os ônibus iriam circular sem motoristas, graças a uma tecnologia desenvolvida no Japão.
Frustradas suas tentativas de obtenção de um novo emprego, Dudu se juntou ao crescente exército de desempregados e passou a viver como vendedor de churrasquinhos num conhecido terminal de ônibus clandestino, no qual pessoas amigas lhe arranjaram um pequeno espaço. A grana obtida quebrava um galho, mas estava longe de ser suficiente para cobrir todas as despesas pessoais e, principalmente, para que ele pudesse pagar o aluguel da casa e a taxa do IPTU. 

Com uma renda mal dava para adquirir alimentos, comprar o gás de cozinha, pagar as contas de luz e de água, Dudu acabou ficando inadimplente perante a imobiliária.

Veio a ação de despejo e Dudu teve de ir morar na favela, ainda por cima de favor, na casa de um colega motorista também desempregado; um puxadinho apertado para ele, a mulher e os três filhos adolescentes. Uma dificuldade que só vendo.

Mas o pior estava por vir. A imobiliária executou a dívida dos alugueis e a justiça penhorou a casa da irmã viúva Cristiane. O oficial de justiça avaliador arbitrou a casa por um valor inferior àquele que Cristiane pressupunha ser o correto, alegando que a crise imobiliária havia barateado os imóveis e que ele tinha fé publica para fazer a referida avaliação. 

E disse, mais. Afirmou que num segundo leilão, a casa poderia ser arrematada por uma quantia ainda menor, caso não houvesse oferta adequada; e que tal fato vinha ocorrendo comumente (há pessoas que vivem dessa prática, lucrando muito com a compra de imóveis a preços vis).

A viúva Cristiane foi checar com um parente advogado se, como ouvira dizerem, bens de família eram impenhoráveis. Recebeu a resposta de que havia uma exceção legal para os casos de fiança em contratos de locação. Tratava-se de uma entre as muitas exceções legais colocadas na lei por deputados eleitos pelos lobbies de cada segmento da economia (no caso, as imobiliárias). 

Tais aberrações são aprovadas rapidamente, na base do “quem concorda permaneça sentado, está aprovada a matéria”, sem que a opinião pública se dê conta da extensão dos danos que advirão.

A dívida foi se avolumando com custas processuais, honorários de advogado, juros e correção monetária, tornando-se impagável por parte tanto de Cristiane quanto do seu irmão desempregado.

A imobiliária locadora, diante da falta de oferta para a aquisição em leilão público, adjudicou a propriedade do imóvel por valor inferior e quitou a dívida, depositando em juízo a ínfima quantia restante, que Cristiane, indignada, recusou-se a receber. A imobiliária passou a ter a propriedade do imóvel.

Certo dia, o mesmo oficial de justiça bateu à porta da viúva Cristiane citando-a para se defender de uma ação reivindicatória da posse promovida pela imobiliária, a nova proprietária. Sem dinheiro para pagar um advogado e assustada com a perspectiva de ser despejada de um imóvel cuja aquisição acarretara tantos sacrifícios, Cristiane sofreu um acidente vascular cerebral que a levou à morte.

Os magistrados responsáveis pelas decisões judiciais causadoras de sua morte apenas cumpriram a lei. Jamais ficam conhecendo o drama pessoal das famílias destruídas pelas ações que dão aos credores das dívidas direitos inumanos. É que eles são os impessoais executores de uma lógica reificada nas quais o direito de propriedade sobre as mercadorias se sobrepõe ao direito à vida.

A despeito de sua educação precária, a tragédia fez com que a ficha caísse para Dudu: ele passou a questionar o direito de propriedade e a própria dinâmica social que tanto defendera no passado perante seus amigos motoristas; mais que isto, compreendeu que o direito contido na legalidade burguesa nada mais é do que a expressão insensível da injustiça.

Não considere este relato cruel em demasia, pois ele é apenas o retrato sem retoques dos dramas vividos cotidianamente pelos desgraçados do nosso tempo: aqueles tratados como pessoas desimportantes, individualidades anônimas na fria estatística dos números que mostram a existência de 14,2 milhões de desempregados economicamente ativos e existencialmente desnecessários perante tal lógica econômica. (por Dalton Rosado)

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