domingo, 19 de fevereiro de 2017

A ÉPOCA DE OURO DA MPB (4ª parte)

FESTIVAL DE FESTIVAIS QUE ASSOLOU O PAÍS
(continuação deste post)
"Caminhando" foi o ápice da carreira do Vandré e também a causa maior de seus infortúnios
O ano de 1968 registraria uma verdadeira  overdose  de festivais. 

Erro de cálculo: eles já haviam cumprido sua função, de renovação estética e revelação de uma geração de artistas que dominaria a cena brasileira, pelo menos, durante a década seguinte inteira.
Jair Rodrigues na Bienal do Samba: 4º lugar.

E a política, que até então se expressara por meio da música e ajudara a alimentar o interesse por esses eventos, agora se jogava definitivamente nas fábricas, escolas e ruas.

Inventaram festivais de todo tipo: de Música Carnavalesca, dos Presidiários, do Violão...

O mais duradouro dessa safra tardia foi o Universitário da Canção, promovido pela TV Tupi, que se aguentou até 1971. 

O saldo de seus quatro anos de existência foi a afirmação do Movimento Artístico Universitário, integrado por Ivan Lins, Gonzaguinha, Aldir Blanc, César Costa Filho, Ronaldo Monteiro, Ruy Maurity, Paulo Emílio, Quarteto Forma, Rolando Faria, etc.

Além disto, foi nele que começaram a despontar Alceu Valença, Belchior, Fagner, Abílio Manoel, Walter Franco e outros.
Não tinha caráter nacional; cada Estado importante realizava o seu, daí ser impraticável fornecer-se a lista de premiações. Entre as músicas que se tornaram mais conhecidas estão "O Trem" (Gonzaguinha), "Mucuripe" (Fagner), "Na hora do almoço" (Belchior) e "Pena verde" (Abílio Manoel).

A Record abriu 1968 com a Bienal do Samba, organizada às pressas para aproveitar a maré. Vitória de "Lapinha", de Baden Powell e Paulo César Pinheiro.
Chico Buarque ficou em 2º, com uma música que atesta o quanto ele estava alheio à barra  pesada daqueles dias: "Bom tempo". [Depois, na autocrítica "Agora falando sério", ele reconheceria a impropriedade de ter feito, então, "cantiga tão bonita/ que se acredita/ que o mal espanta".]

Destaque para um Sérgio Ricardo que, na agradável "Luandaluar", fez os censores de tolos, pois só eles não devem ter captado o que estava subentendido no verso "Abaixo a desventura!"; para a marcante "Canto chorado" (de Billy Blanco, com Jair Rodrigues), que merecia bem mais do que o 4º lugar; e para a paciente e metódica escalada para o estrelato de Paulinho da Viola, cuja "Coisas do mundo, minha nega" obteve o 6º lugar.
A Excelsior tentou em julho ressuscitar seu Festival Nacional da Música Popular Brasileira, mas apenas acabou de o enterrar.

"Modinha", uma amenidade de Sérgio Bittencourt, ficou em 1º, secundada por "Ultimatum", dos oportunistas Marcos e Paulo Sérgio Valle, então em fase de bajular a esquerda.

A instigante "Mágica", dos Mutantes, nem chegou à final, da qual participaram com a menos importante "Lovely Rita".
O veterano João Dias teve uma aparição bizarra, defendendo "Capoeira", de Evaldo Gouveia e Jair Amorim.

Sérgio Ricardo não obteve o justo reconhecimento para sua impactante "Gira-sol", o melhor fruto de sua fase experimental em que tentava abrir novos caminhos (brincando com o som das palavras como os poetas concretistas, ousando ir além das chamadas raízes musicais e até inovando em suas performances – foi, que eu saiba, o primeiro a utilizar filmes como pano-de-fundo para suas músicas, numa curta temporada no Teatro de Arena (SP), em 1968.
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A cidade cantou com Vandré. Aí veio o dilúvio – O último grande marco da época dos festivais foi o 3º FIC, que a TV Globo realizou em setembro.
Ocorreu em meio a passeatas, mortes, ações armadas da esquerda, atentados dos para-militares de direita, atuação impune do CCC (que acabara de espancar o elenco da peça Roda Viva, em SP), TFP, TFM e outras siglas medonhas.

A temperatura começou a ferver na eliminatória paulista, quando Caetano Veloso recebeu monumental vaia ao defender, com os Mutantes, sua "É proibido proibir", baseada numa palavra-de-ordem das recentes barricadas parisienses.

Gil, com barba cerrada e camisolão africano, chocou tanto a platéia pela aparência quanto pelos versos incendiários de "Questão de ordem".
Ao serem anunciadas as músicas classificadas para irem à grande final no RJ, Caetano foi  proibido, pelas vaias, de  apresentar sua "É proibido proibir". Já irritado por "Questão de Ordem" ter ficado de fora, explodiu, pronunciando o discurso famoso:
"Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) São a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! (...) Vocês são iguais sabe a quem? (...) Àqueles que foram ao Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles!"
A esquerda compareceu ao Maracanãzinho com o que tinha de melhor: "Caminhando", profissão-de-fé de um Vandré amargurado por várias desilusões recentes e que extraiu do sofrimento seus versos mais certeiros e contundentes; "América, América", altaneiro tributo de César Roldão Vieira ao comandante Che Guevara; e "Canção do Amor Armado", outra culminância da fase de ousadias de Sérgio Ricardo.

Pressões das autoridades ditatoriais sobre os organizadores, e destes sobre o júri, impediram a vitória da grande favorita do público: "Caminhando". Graças a um expediente típico de araponga, o radialista Walter Silva esqueceu um gravador ligado no recinto da reunião do júri, constatando então que os jurados foram orientados a não premiar músicas que fazem propaganda da guerrilha.
A reapresentação de "Caminhando", já anunciado seu 2º lugar, foi comovente, com os moradores de Copacabana saindo às janelas para cantá-la junto com a TV (colocada no volume máximo!), num clímax emocional que tinha a ver tanto com a injustiça musical quanto com as indignidades a que os efetivos da repressão haviam recém-submetido os participantes de uma  passeata, urinando nos jovens rendidos e bolinando as moças, tão certos da impunidade que se permitiam praticar tais atos em público.

A maior vaia da história dos festivais foi então direcionada a "Sabiá", impedindo que as atônitas Cynara e Cybele bisassem a vencedora. Para compensar, a Globo deu um jeitinho para que esta canção vencesse também a fase internacional do 3º FIC...
Juízos estéticos à parte, a composição de Chico Buarque e Tom Jobim estava mesmo em descompasso com o Brasil convulsionado daqueles dias e pagou por isto.

As demais classificadas:
– , "Andança", de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, por Beth Carvalho e Golden Boys;
– , "Passacalha", de Edno Krieger, pelo Grupo 004; e
– , "Dia da Vitória", de Marcos e Paulo Sérgio Valle, pelo primeiro.
Foram preteridas músicas indiscutivelmente melhores do que estas três últimas, como "O sonho" (Egberto Gismonti), "Caminhante noturno" (Mutantes), "Na boca da noite" (música de Toquinho e versos – belíssimos!!! – de Paulo Vanzolini) e "Oxalá" (Theo de Barros), além das já citadas "Canção do Amor Armado" e "América, América".  

Além de covarde, o júri foi de uma incompetência ímpar. 

(continua neste post)

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