quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A ÉPOCA DE OURO DA MPB (1ª parte)

Marco da reação artística ao golpe: o Show Opinião.
Brasil, 1965. A repressão que se abatera sobre sindicatos, partidos políticos e entidades estudantis não foi estendida às artes, cuja importância como fator subversivo até então vinha sendo quase nenhuma. 

O teatro de denúncia, os Centros Populares de Cultura, o cinema novo, tudo isso atingira contingentes numericamente tão inexpressivos no período do pré-golpe que os novos donos do poder se permitiram adotar com relação à cultura, de início, uma postura de déspotas esclarecidos...

Como consequência, os palcos e telas começaram a ser catalizadores do repúdio ao regime e das esperanças de uma reviravolta popular, no lugar dos canais de comunicação que permaneciam bloqueados.

Surgiam espetáculos de integração entre a música, a literatura e o teatro, como Liberdade, Liberdade e o Show Opinião (colagem em que os personagens-símbolos do povo oprimido, camponeses e favelados, eram representados, respectivamente, pelo compositor de baião João do Valle e o sambista Zé Keti).
Oduvaldo Viana Filho e Isabella em O desafio.

O cinema, por meio de Paulo César Saraceni, lançava O desafio, filme cujo título aparecia em pichações contestatórias nos muros de São Paulo.

A música, após o refluxo da bossa-nova, tendia para um maior engajamento político e social, na linha defendida por Carlos Lira, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e Nara Leão.

E a redescoberta ou revalorização dos sambistas do morro, colocados em evidência graças às parcerias com expoentes da bossa-nova (Pixinguinha/Vinícius de Moraes, Carlos Lira/Zé Keti, etc.), ainda rendia dividendos.

Foi quando o Centro Acadêmico Onze de Agosto, da tradicional Faculdade de Direito da USP, sediada no Largo São Francisco (de papel destacado em vários episódios de resistência ao arbítrio através dos tempos), decidiu promover noitadas de música popular no Teatro Paissandu, sob o comando do radialista Walter Silva, apelidado de o pica-pau (ele era o apresentador de um programa de rádio dedicado à bossa-nova, pick-up do pica-pau). 
O Paramount na fase das noitadas de MPB

Logo esses shows eram assistidos por plateias entusiásticas (estudantes, intelectuais, boêmios, profissionais liberais).

Um ótimo documento do período foi o LP Uma Noite no Paramount, lançado em 1983 pela RGE – não é fácil de encontrar-se na internet, mas os obstinados o conseguem baixar. Divide-se quase que meio-a-meio entre a bossa-nova tradicional e canções de protesto como "Terra de ninguém", "Maria Moita", "Sem Deus com a família", "Aleluia", "Pedro Pedreiro").

A temperatura do espetáculo pode ser aferida pelo frenesi do público quando César Roldão Vieira canta versos do tipo "a minha mulher é só minha,/ a do branco eu nem sei se só dele é".

Um observador atento, Solano Ribeiro, viu a chance de realizar um evento de grande repercussão. Ele era um dos mandachuvas da TV Excelsior - Canal 9 (emissora paulista já extinta).

1º FESTIVAL DE MPB: 
A ESTRELA SOBE NO GUARUJÁ.

Idealizado por Solano Ribeiro, o 1º Festival da Música Popular Brasileira teve lugar no Guarujá (litoral sul paulista), em abril de 1965.

Projetou nacionalmente Elis Regina, que aos 12 anos começara a se apresentar em programas infantis de Porto Alegre, tendo depois gravado dois discos de músicas para a juventude e, afinal, firmado reputação como cantora de bossa-nova nas boates cariocas do Beco das Garrafas.

Sua interpretação vigorosa, arrebatada, com movimentação frenética (movia os braços como pás de moinho...), transformou-a instantaneamente em estrela.
Defendeu a canção vencedora, "Arrastão", parceria de Edu Lobo e Vinícius de Moraes.

As classificadas a seguir não marcaram época:
  • 2ª, "Valsa do amor que não vem", de Baden e Vinícius, por Elizete Cardoso;
  • 3ª, "Eu só queria ver", de Vera Brasil e Mirian Ribeiro, por Claudete Soares;
  • 4ª, ""Queixa", de Sidney Miller, Zé Keti e Paulo Tiago, por Ciro Monteiro; e
  • 5ª, "Rio do meu amor", de Billy Blanco, por Wilson Simonal.
Como grande injustiçada ficou "Sonho de um carnaval", composição na mesma linha das que valeriam depois a Chico Buarque inúmeras vitórias em festivais. Como ainda não tinha  nome, os jurados passaram batidos pelos belíssimos versos e o enfoque desencantado, adulto, do fenômeno carnaval.
E, na interpretação de "Sonho de um carnaval", aparecia Geraldo Vandré – um paraibano que há mais de dez anos tentava a sorte no eixo Rio/São Paulo e já gravara um LP de peso (embora passasse quase despercebido).

"O FINO DA BOSSA", NA ESTEIRA  
DOS SHOWS DO PARAMOUNT.

A poderosa TV Record - Canal 7 reagiu imediatamente, arrancando Solano Ribeiro a peso de ouro da Excelsior e entregando-lhe a organização do seu próprio festival.

Da mesma forma, contratou Elis Regina e colocou-a no comando de um programa que teria capital importância na afirmação dos novos valores da MPB: O Fino da Bossa.
Gravado as segundas-feiras no Teatro Record e levado ao ar nas quartas, O Fino da Bossa logo era enviado também a outros Estados brasileiros, além de ser reprisado nas tardes de sábado para os telespectadores paulistas.

O show inaugural ocorreu no dia 17 de maior de 1965, aproveitando, basicamente, o cast que vinha se exibindo no Paramount: Zimbo Trio, Ciro Monteiro, Nara Leão, Baden Powell, Edu Lobo, Jair Rodrigues e Maria Odete.

Comentando o espetáculo de estréia, o crítico de O Estado de S. Paulo destacou a capacidade de Elis Regina em acumular as funções de intérprete e apresentadora:
"...atuou a jovem e talentosa cantora em tal qualidade e como mestre de cerimônias, papel que desempenhou a inteiro contento. Temos a certeza de que, com mais um pouco de traquejo, a artista adquirirá, nessa prática, aquela mesma arte que a distingue como cantora popular moderna, de grande capacidade de transmissão, de interpretações muito pessoais e imaginativas..."
CRISE NO "FINO": A CLASSE 
MÉDIA ASSUME O COMANDO.
.
Apesar de ser até hoje lembrado com esse nome, O Fino da Bossa só existiu nos três primeiros meses de programa. O título pertencia a Horácio Berlink Neto, que o utilizara num festival de bossa-nova por ele organizado em 1964 e no LP daí resultante.

A Record pôde aproveitá-lo no curto espaço de tempo em que Berlink foi o assistente do produtor Manuel Carlos. Depois, viu-se obrigada a trocar a denominação para O Fino.

Como atrações fixas, Elis Regina, Jair Rodrigues e o Zimbo Trio.

Elis e Jair respondiam pelas apoteoses finais, em pot-pourris que vinham dos tempos em que protagonizaram o show Dois na Bossa, no Teatro Paramount, sucesso no palco e em disco.

A fase inicial do programa, com predominância dos veteranos da bossa-nova e de sambistas do morro, segurou uma boa audiência até o início de 1966, quando O Fino começou a despencar nas pesquisas do Ibope.
Paralelamente, a Jovem Guarda de Roberto Carlos ia de vento em popa, inclusive provocando a defecção de Wilson Simonal, até então bossanovista, que lançou o  samba jovem  para se aproximar do rico mercado do iê-iê-iê.

A rivalidade que foi se criando entre os dois programas chegou a tal ponto que Jorge Ben, convidado para participar de O Fino, tinha ensaiado seu número com os outros artistas e estava prestes a entrar no palco quando foi peremptoriamente vetado.

Motivo: comparecera, no dia anterior, ao Jovem Guarda. Por conta diste incidente, ele se transformou no Bidu da corte de RC...

Elis Regina, que tirara férias de dois meses em Portugal (outro fator que afetou a audiência do programa), afinal voltou e, tomando conhecimento da situação, reagiu intempestivamente: declarou à imprensa que RC era mau cantor e que suas composições "infantis"  logo seriam esquecidas.
A direção da Record obrigou-a a se retratar e até a cantar iê-iê-iê no programa de aniversário de RC.

Aí, com a cabeça fria, os expoentes da nova MPB, no Rio e São Paulo, fizeram uma série de reuniões para avaliar o cansaço do movimento. Participaram, entre outros, Jair Rodrigues, Nara Leão, Edu Lobo, Baden Powell, Caetano Veloso, Torquato Neto, Maria Bethânia, Maria Odete, Chico Buarque e Gilberto Gil,

Chegaram à conclusão de que o público se afastara principalmente por causa da excessiva repetição das mesmas músicas. E decidiram aproveitar com mais intensidade o trabalho de novos autores, como Chico e Gil.

O primeiro cedeu "Olê, olá", "Rita", "Madelena foi pro mar" e "Pedro Pedreiro" para Nara Leão, enquanto Gil encaixou "Louvação", "Roda", "Lunik 9" e "Viramundo" no repertório de Elis.
Os jovens compositores de classe média, pós-bossa-nova, começaram assim a dar a tônica de O Fino – o que era coerente com a relevância que a juventude de classe média ia assumindo no consumo musical.

Edu Lobo foi outro que cresceu em importância, a partir da excelente receptividade obtida pela peça Arena Conta Zumbi, cujos temas compôs.

Alguns ganharam existência própria: "Zambi", "Canção das dádivas da natureza", "A mão livre do negro", "Venha ser feliz", "Tempo de guerra" e, principalmente, "Upa, neguinho".

O texto, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, era uma transparente parábola sobre o ascenso do movimento popular e o golpe de 1964, inclusive tendo a audácia de, veladamente, apontar a luta armada como alternativa à ditadura, por meio de uma brilhante recriação da poesia "Aos que virão depois de nós", do Brecht..
Maria Bethânia, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Tomzé viam igualmente seu prestígio aumentar depois do espetáculo Arena Conta Bahia, quase uma reedição do Nós, Por Exemplo, que haviam apresentado em Salvador.

Até então, Bethânia era a mais conhecida do grupo baiano, graças ao Show Opinião – substituíra Nara Leão no meio da temporada e popularizou um dos seus temas, "Carcará".

A MARCHA-RANCHO DAS 
METÁFORAS REVOLUCIONÁRIAS

Em junho de 1966, a Excelsior promoveu seu Festival Nacional da Música Popular, no qual começou a brilhar a estrela de Geraldo Vandré, vencedor com uma bela marcha-rancho de inspiração revolucionária: "Porta-estandarte" (parceria com Fernando Lona e interpretada por Tuca e Airto Moreira).
Numa época em que passeatas e manifestações de rua estavam proibidas, Vandré serviu-se de um desfile de escolas de samba como metáfora da reconquista da avenida: a porta-estandarte traz "certezas e esperanças pra trocar/ por dores e tristezas que, bem sei,/ um dia ainda vão findar/ um dia que vem vindo/ e que eu vivo pra cantar,/ na avenida, girando o estandarte na mão pra anunciar".

Nos lugares seguintes, duas banalidades: "Inaê", de Vera Brasil e Maricene Costa, por Nilson; e "Chora céu", de Adilson Godói e Luís Roberto, com Cláudia.

Em 4º, a ótima "Cidade Vazia" (Baden Powell e Lula Freire), defendida pelo estreante Milton Nascimento.

E só em 5º ficou a canção que trazia uma das melhores letras de Caetano Veloso em todos os tempos, "Boa palavra", cantada por Maria Odete. Ah, os júris... 

(continua neste post)

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