sábado, 14 de janeiro de 2017

BEATLES: REVOLUCIONÁRIOS CULTURAIS OU INSTRUMENTOS DE ALIENAÇÃO MUSICAL?

"Quando eu fui para a escola, me perguntaram o que eu queria ser
quando crescesse. Eu escrevi 'feliz'. Eles me disseram que
eu não entendi a pergunta, e eu lhes disse que não
entendiam a vida.” (John Lennon)
O surgimento da beatlemania em 1963 parecia apenas a reprodução atualizada do fenômeno Elvis Presley nos anos 50; uma sucessão musical-midiática inglesa daquilo que ocorrera nos Estados Unidos alguns poucos anos antes com o rock’n’roll. 

Mas, a beatlemania ocorria num mundo que superara os traumas e cicatrizes da 2ª guerra mundial e queria quebrar (ainda que sem o saber) as estruturas conservadoras comportamentais que ainda persistiam. Nos grandes centros urbanos, antes dos anos 60, a caretice imperava rigidamente. 

Os Beatles, com aqueles cabelos penteados pra frente e volumosos, sem brilhantina (o gel de hoje) e com seu rock’n’roll mediado pelo skiffle inglês de pouco antes, tinha uma batida diferente, embora ele também fosse, como o próprio rock’nroll, um filho miscigenado do blues (os Rolling Stones, seus rivais britânicos imediatos, eram mais bluseiros).

Aos poucos a mensagem love story ingênua dos jovens filhos de proletários dos subúrbios da cidade portuária de Liverpool, acompanhada de ritmos dançantes, irá contagiar o mundo, dizendo para a juventude: “Vocês podem ir mais adiante!”. 

Ir mais adiante significava quebrar tabus comportamentais como os relativos ao vestuário, ao enquadramento religioso-profissional-cultural dos seus pais e aos valores sociais estabelecidos; significava buscar alternativa à insatisfação com a vida insípida de uma sociedade capitalista tradicional, que negava todos esses anseios de liberdade.

Na segunda metade dos anos 60 houve uma virada. As próprias músicas dos Bleatles se tornaram mais sofisticadas, e o seu comportamento bem humorado cedeu lugar a posturas mais introspectivas, psicodélicas, repercutindo críticas sociais e o contacto com as drogas que passou a ser comum entre eles e a os jovens do mundo afora. 

Seguiu-se a isto o grande movimento do flower power, que deixou seriamente preocupado o establishment, que cedo se apressou em restabelecer a ordem (conseguindo-o nos caretíssimos anos 70 dos yuppies).   

O francês Guy Debord, no seu filme A sociedade do espetáculo, mostra os Beatles como parte da indústria cultural mercantilizada que nada mais seria do que a arte transformada em mercadoria no seu mais elevado grau de sofisticação midiática e destinada à alienação completa.   

No Brasil a bealemania passou a ser conhecida como Jovem Guarda, com a mesma força entre a maioria dos jovens. Entretanto, atraiu a crítica dos intelectuais e militantes engajados no luta contra a ditadura militar que se instalara. 
Um amigo meu, jovem jornalista de esquerda ligado ao Partidão, viveu na França de 1963 a 65. Ao voltar, desceu no aeroporto de Fortaleza uma coleção de discos dos garotos de Liverpool na bagagem; sem saber que a música dos Beatles inserira-se instantaneamente no mercado fonográfico mundial globalizado, estava receoso de que no Brasil não existissem discos do Beatles, 

Recebido por amigos de esquerda, teve logo de escutar: “Quer dizer que você gosta do The baitolas [gays]?".   

Ambos os aspectos podem ser admitidos como concomitantemente presentes: tanto o detonar inconsciente de uma mudança de postura representativa de um sentimento de rebeldia que estava latente, como também a cooptação pelo sistema deste movimento cultural, para servir a seus interesses mercantis (maximização dos lucros da indústria cultural) e de alienação do pensar revolucionário.  
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PERFIL DOS QUATRO BESOUROS
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Disse George Martin, músico e produtor dos discos dos Beatles nos estúdios londrinos da Abbey Road, que “Paul McCartney era o azeite de oliva extra virgem em contraste com o suco de limão puro de John Lennon.” 

Poderíamos acrescentar: Ringo Starr era o baterista bonachão que todos adoravam e George Harrison, o instrumentista perfeito, confiável, mais recatado, místico, e grande compositor. 

A mistura de grandes instrumentistas, com cantores e compositores e seu maestro e produtor resultou numa grande qualidade e de reconhecida importância cultural para o século XX.  

Os quatro certamente formaram um dos grupos com vozes e musicalidades mais harmônicas, criativas e competentes da história do pop. Foram oito anos (de 1963 a 1970) dominando as paradas musicais em todo o mundo, com canções cultuadas até hoje, quando adolescentes que poderiam ser netos dos Beatles ainda os consideram atuais e maravilhosos.

Mas, a importância do fab-four não se limitou apenas à área musical, estendendo-se à contribuição para a quebra de muitos valores comportamentais preconceituosos (quebra parcial, pois muitos deles ainda estão vigentes). 

O lamento blues que o mercado fonográfico americano não reconhecia e a rebeldia rock’n’roll encarnada nos anos 50 por James Dean e Elvis Presley (um branco bonito que tinha o suingue dos negros com quem conviveu), encontrou nos Beatles um jeito britânico de ser, sem preconceitos, mais alegre e menos violento, que encantou o mundo. 
Na fase final, a música dos Beatles veio ao encontro dos movimentos sociais de combate à guerra do Vietnã; da luta de Martin Luther King, contra a segregação racial e em defesa dos direitos civis; e, principalmente, do movimento hippie de paz e amor, cujo marco histórico foi Woodstock, concerto contra  a sociedade de consumo, o poder e o dinheiro, temas que hoje têm tanta atualidade.

Cada um gosta dos Beatles ao seu modo. Em termos musicais eles eles excepcionalmente competentes.  

Minha admiração especial por John se deve ao fato dele ter usado os seus recursos financeiros e prestígio internacional para afrontar a beligerância do establishment dos EUA, que contava com J. Edgar Hoover (diretor do FBI) e o presidente Nixon como proeminências; eles, inclusive, o pretenderam deportar. 

Ademais, John denunciou a política armamentista britânica, devolveu sua medalha real de Membro do Império Britânico e levantou a juventude americana e mundial. E a canção Imagine é hoje considerada um hino do inconformismo face à estreiteza nacionalista, a recessão econômica, a cegueira ecológica e a dissociação de gênero em curso. 

Entretanto, a admiração por John não faz diminuir meu apreço pela musicalidade George Harrison e de Paul MacCartney (que, do alto dos seus quase 75 anos, continua em plena atividade). 

Aliás, a boa molecagem Beatles dos anos iniciais e a hospitalidade provinciana liverpooliana se parecem de alguma forma com o (antigo) jeito brasileiro de ser, antes dessa violência urbana extremada que transformou o Brasil num lugar muito perigoso para se viver. 
(por Dalton Rosado)

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