domingo, 31 de dezembro de 2017

2018 TERÁ CONCERTO DE VANDRÉ NO BRASIL

Vandré e Lau Siqueira preparando o espetáculo
Uma ótima notícia me dá o abnegado Alquimedes Daera, que mantém viva a chama do Clube do Jazz Paraibano: Geraldo Vandré ultima os preparativos para voltar a apresentar-se ao vivo no Brasil, com o concerto Poema Sinfônico. Está sendo apoiado pela Secretaria de Cultura da Paraíba, cujo titular é o escritor e poeta Lau Siqueira.

Torço para que a iniciativa tenha êxito. O pique do Vandré para criações mais ambiciosas ficou demonstrado quando ele compôs a missa Paixão segundo Cristino, que os leitores podem escutar na janelinha abaixo.

Eis o texto de apresentação do álbum respectivo, redigido por Carlos Frederico Marés de Souza Filho, então presidente da Federação Cultura de Curitiba:
"A Paixão segundo Cristino foi escrita por Geraldo Vandré, em 1968, para a celebração da Semana Santa na Igreja de São Domingos das Perdizes, em São Paulo. 
Com o assessoramento teológico dos frades dominicanos, Vandré escreveu uma das mais belas páginas litúrgicas populares sobre a paixão e a morte de Jesus Cristo. 
Durante anos ela foi apresentada na igreja dos dominicanos como memória e celebração de tantos que, a partir de 1968, viveram na sua própria carne a perseguição, calúnia, exílio, agonia, paixão e morte. Suas vidas foram celebradas e suas esperanças renovadas a cada ano nas vidas e esperanças de seus irmãos.
Essa paixão é um tributo à resistência de tantos que nas suas vidas e caminhos recriaram a vida e os caminhos de todos os homens que lutaram pela justiça e liberdade. A Fundação Cultural de Curitiba, ao recriar esta obra, celebra todos os homens e mulheres que deram as suas vidas para que surja um mundo novo pleno de justiça e fraternidade".
Tive dois longos papos com o Vandré, em 1968 (quando ele estava finalizando a Caminhando) e em 1980 (quando tal canção, depois de passar mais de 10 anos proibida, voltava a fazer sucesso, na voz de Simone). 

Talvez o terceiro aconteça agora que ele voltará a apresentar-se no Brasil, após quase meio século de afastamento  inicialmente imposto, depois voluntário, porque ele continuava assombrando por seus fantasmas e dúvidas

MUITOS TERNOS, SMOKINGS E VESTIDOS JÁ FORAM LAVADOS. FICARAM FALTANDO AS TOGAS. SUA VEZ CHEGARÁ EM 2018?

Por Jânio de Freitas
SÓ PARA ESQUENTAR
A crítica de que o Judiciário não recebeu as atenções da Lava Jato cresceu desde que o poder político do Estado do Rio se tornou alvo. Pois agora, um dos mais graúdos e mais conhecedores dos subterrâneos do seu meio, preso sem esperar complacências, revelou a amigos a disposição de abrir a cortina do Judiciário. Iniciativa que criaria na Lava Jato uma etapa diferente de tudo o que houve até aqui. 

A sensibilidade do Judiciário é muito maior que a dos demais poderes, não sendo necessário grande número de acusações para irradiar uma crise. Além disso, cada figura atingida, com veracidade ou não, como é do método da Lava Jato, em princípio desfruta das condições materiais para mover seus interesses em tribunais, quer dizer, é sempre alguém de notoriedade. O que inclui Brasília.

Ainda no Judiciário, o confronto envolvendo o juiz Glaucenir Oliveira, de Campos (RJ), e naturalmente Gilmar Mendes, transborda esquisitices. Esse juiz, dado a incidentes, fixado em demolir Anthony e Rosinha Garotinho, surgiu nas redes em uma gravação de acusações gravíssimas e insultos muito fortes ao ministro. 

No que disse de mais barato, o ex-governador pagou a Gilmar pelo habeas-corpus para tirá-lo da prisão. "Uma mala grande", diz Oliveira ter ouvido de "gente de dentro". Versão mais do inverossímil, tanto pelo pagador como pelo recebedor.

Mas por que a caça, não de agora, ao ex-governador? Até delegado da Polícia Federal já se complicou nesse tiro ao alvo. "Briga de grupos políticos". "Disputa de domínio religioso". "É um esquema para tirar Garotinho da disputa pelo governo do Estado". 

Tudo isso, e mais alguma coisa, é possível. Mas não explica a ausência da PF na apuração de atos, inclusive de aparência oficial, que ferem liberdades democráticas em geral e, em particular, direitos político-eleitorais.
Divulgada a gravação de ataque a Gilmar Mendes, seu imediato pedido de ação da PF resultou na informação de que a autenticidade da voz do juiz seria logo verificada. 

Investigação em sigilo, vá lá, porém em mais de uma semana não se teve notícia do que levaria apenas minutos. Com várias reputações em jogo.

O texto de solidariedade ao ministro, por dez integrantes do STJ, parece feito para evitar que a pedra posta sobre o assunto se transforme em lápide. 

E, conquanto não seja pouca a opinião de que Gilmar Mendes provoca reações crescentes, está sendo articulado o afastamento do juiz Glaucenir Oliveira. O que resolve um lado do problema, mas não o outro. A cúpula do Judiciário mais se divide do que se recompõe.

OS DIAS EM QUE A IMAGINAÇÃO QUASE CHEGOU AO PODER

OS 50 ANOS DA PRIMAVERA DE PARIS
"Não trabalhe jamais!"
(frase encontrada nos
muros de Paris)
Já lá se vão 50 anos desde o maio de 1968 na França. 

Tal movimento representou a mais clara manifestação de insatisfação popular contra os valores capitalistas e seu modo de vida, justamente no momento em que a França poderia se jactar de uma predominância econômica sobre seus vizinhos europeus e o restante do mundo, e da possibilidade de confirmação vitoriosa do Estado do bem-estar social

Era o ápice dos incríveis e revolucionários anos 60 que, infelizmente, iriam ser eclipsados pela hipocrisia conformista da década seguinte, que em nosso país foi marcada pelo falso milagre brasileiro patrocinado pelo governo militar com o beneplácito dos que estiveram na base do golpe de 1964, os Estados Unidos e sua Operação Condor para a América latina, bem como pela perseguição raivosa e fascista aos que ainda desejavam manter de pé as bandeiras revolucionárias da década anterior.

Aquele movimento contestatório de estudantes e trabalhadores já está sendo encarado como uma segunda revolução francesa, dada a sua importância para o significado do conceito de Estado e da sociedade industrial produtora de mercadorias, 

Isto porque muito mais relevante do que os resultados práticos político-institucionais obtidos pelo movimento.em termos de mudanças na correlação de força e nos organogramas do poder, o maio de 68 mexeu com a cabeça das pessoas, modificando seu modo de pensar e de agir.  

Iniciado a partir de reivindicações estudantis, sob o comando de Daniel Cohn-Bendit, o movimento se alastrou para os trabalhadores de um modo geral, tanto que 10 milhões deles aderiram (cerca de 2/3 de toda a força de trabalho do país) durante 15 dias; e teve tal apoio popular que levou cerca de 1 milhão de pessoas em praça pública.
Saiu, assim, do controle das lideranças sindicais e partidos de esquerda para confrontar não apenas o governo do general Charles De Gaulle (cujo aparelho policial se mostrou impotente para conter as manifestações), mas a própria essência do sistema produtor de mercadorias. 

Nem mesmo o Partido Comunista Francês (que em certo momento tentou direcionar o movimento no sentido de acordos políticos institucionais) conseguiu colocar um freio na avalanche contestatória, que mais pareceu ter a força de uma inundação que tudo arrasta.

Um das frases da Internacional Situacionista, representada por Guy Debord (autor do livro A sociedade do Espetáculo, de 1967), críticas à linha stalinista do marxismo tradicional, inscritas nos muros de Paris, era a que serve de epígrafe para este artigo: Ne travaillez jamais, questionando a essência do sistema produtor de mercadorias, pois negava não apenas o quantum de remuneração dos trabalhadores, mas o trabalho assalariado em si, considerado como fonte de toda a miséria capitalista.
Diante da Sorbonne: sejam realistas, peçam o impossível.

Outro slogan memorável: A imaginação ao poder. Uma heresia para os conformistas que, independentemente de orientações ideológicas, preferiam manter-se nos caminhos rotineiros da política convencional a embarcarem na jornada ao desconhecido proposta pelos jovens.

maio de 68 colocou, portanto, em xeque tanto a direita quanto a esquerda tradicional, que mais se escandalizou do que deslumbrou ao ver a utopia revolucionária ganhar as ruas e erguer barricadas como as da Comuna de Paris de 1871.

O movimento destacava aspectos como sexualidade e prazer na sociedade mercantil, criticando-a por transformar todas as pessoas em peças de uma engrenagem sufocante da vida social. Nada mais atual.   

Naqueles dias todo o sistema capitalista francês, tanto do ponto de vista econômico como institucional sentiu a força de que é capaz a mobilização popular. As fábricas, grande comércio e setores de serviços passaram às mãos do povo, ante a impotência do aparato repressivo.

As forças militares, rechaçadas pelos cidadãos, não tiveram como conter o transbordamento de resistência e alegria dos que lutavam ao tomarem seus destinos seus destinos nas mãos. A greve geral que se seguiu às manifestações levou uma multidão de mais de 1 milhão de pessoas às ruas de Paris, contando com a adesão de quase todas as profissões.

Entretanto, ainda que a insatisfação com o sistema fosse manifesta, o movimento não teve depois continuidade, por falta de uma proposição teórica que soubesse aglutinar todo o potencial revolucionário nele contido. Não estava claro que o passo seguinte deveria ser a abolição dos construtos capitalistas, alicerçados por suas categorias fundantes: trabalho abstrato, trabalhador, dinheiro, mercadorias, mercado, estado e política.

Na esteira do vácuo de encaminhamentos consequentes como a tomada das fábricas para a produção de bens socialmente úteis e serviços necessários ao consumo cotidiano, veio uma retomada do controle por parte dos que entendem que somente pode existir vida social a partir da produção de valor (dinheiro e mercadorias) e de uma organização estatal verticalizada. 

Paulatinamente os trabalhadores recomeçaram a produzir mercadorias; os dirigentes sindicais voltaram à sua rotina de negociação de pedintes de melhoras salariais e consequente afirmação do trabalho abstrato; as instituições do Estado retomaram o discurso hipócrita habitual, de defesa da cidadania; e se restabeleceu o marasmo opressor preexistente.  

Entretanto, como não há mal que dure para sempre, ainda reverberam nos ouvidos dos cidadãos os ecos do maio de 68, até porque a insatisfação popular é agora acirrada pela crise irreversível do capitalismo, com ingredientes novos como a insensatez ecológica suicida.

Por Dalton Rosado
Nunca foi tão necessário reatarmos os fios da História,  com a volta dos cidadãos às ruas, às greves e às barricadas, nestes tempos em que o capitalismo novamente nos apresenta sua face mais medonha e as condições novamente estão dadas para suas vítimas o confrontarem em ampla escala, como naquele ano memorável em que o povo francês, de tantas jornadas libertárias, por algumas semanas tomou conhecimento de sua força.

sábado, 30 de dezembro de 2017

DALLAGNOL DÁ ENTREVISTA JUSTIFICANDO DESDE JÁ A PRISÃO DO LULA NO DIA 24: "A LEI VALE PARA TODOS".

Em entrevista que concedeu ao blog do jornalista Josias de Souza, o coordenador da força-tarefa da Operação Lava-Jato, Deltan Dallagnol, foi indagado sobre uma possível detenção do ex-presidente Lula no próximo dia 24. 

Respondeu que, se o TRF-4 confirmar a pena de nove anos e meio de reclusão a ele imposta pelo juiz Sérgio Moro, a prisão do ex-presidente será "uma decorrência natural da condenação em segundo grau", pois "a lei vale para todos"

Eis a íntegra das respostas de Dallagnol sobre o destino de Lula.

"A determinação da prisão como uma consequência do julgamento de segundo grau é algo que vai competir ao TRF da 4ª Região. Eventualmente, o Ministério Público Federal pode até pedir. Porém, essa avaliação não será feita pela força-tarefa de Curitiba, mas pelos procuradores que atuam no segundo grau. O tribunal pode determinar a prisão de ofício, sem nenhuma solicitação. Mas o Ministério Público pode, sim, pedir. 
[sobre se a prisão efetivamente ocorrerá, ou não] A prisão é uma decorrência natural da condenação em segundo grau. O que tenho visto é os tribunais determinando a prisão depois do julgamento em segunda instância. Por vezes, essas determinações são suspensas por alguns ministros do Supremo.

[sobre o ministro do STF Gilmar Mendes haver sustentado que o Supremo não tornou obrigatória a prisão dos condenados em segunda instância] Quando o Supremo julgou a questão da prisão em segunda instância, o que ficou decidido é que os recursos aos tribunais superiores não suspendem a execução do acórdão condenatório de segundo grau. Ou seja, o condenado vai preso. Não é uma questão de risco para o processo ou risco para a ordem pública. Não se trata mais de uma prisão preventiva, mas de uma prisão que decorre de condenação. Tratando-se de uma prisão por condenação, não vejo razões para discriminar entre um réu e outro.

[sobre a exclusão de Lula do processo eleitoral ser inadequada] Não olho para essa situação com olhos de processo eleitoral. Analiso a situação pela perspectiva da justiça criminal. Vejo com os olhos de quem acredita que a lei vale para todos. Observo com a preocupação de que, no Brasil, todos sejam verdadeiramente iguais debaixo da lei. Não vejo razão para distinguir entre Francisco e Chico. A lei vale para todos.

[sobre como distinguir o processo criminal do eleitoral] São coisas diferentes. Uma coisa é a pessoa ser presa em razão da execução de uma sentença de segundo grau. Outra realidade é a aplicação da Lei da Ficha Limpa, em razão de uma condenação por órgão colegiado. Algo que impede a pessoa de concorrer a mandato eletivo. A condenação criminal é tratada por meio da cadeia de recursos criminais, via habeas corpus. A consequência prevista na Lei da Ficha Limpa é é tratada por meio de recursos na Justiça Eleitoral. São áreas diferentes do Direito".

Opinião do editor: inadequado mesmo é um procurador da República tecer elucubrações deste tipo, sobre uma decisão judicial que tem muito a ver com sua atuação profissional e afetará diretamente o seu prestígio. Pode até não estar fazendo lobby pela confirmação da sentença e pelo rápido encarceramento do Lula, mas é a primeira impressão que sua entrevista causa em qualquer leitor isento. Os holofotes parecem tê-lo deslumbrado a ponto de esquecer a liturgia do seu cargo. 

1968 NÃO TERMINOU: OS FIOS DA HISTÓRIA PODERÃO ATÉ SER REATADOS MEIO SÉCULO DEPOIS, POR QUE NÃO?

OS 50 ANOS DA PRIMAVERA DE PARIS
As barricadas parisienses de maio de 1968...
Por um capricho da História, as efemérides dos dois marcos revolucionários mais significativos do século 20 agora se sucederam, como que nos convidando a refletir sobre ambos.

A revolução russa de 1917 foi a mais clássica das revoluções inspiradas pelo marxismo – e também o divisor de águas entre os ideais românticos do século 19 e uma tentativa de atualização que produziria um épico... desvirtuamento!

Até a Comuna de Paris (1871), o avanço crescente das lutas do proletariado parecia indicar que a profecia de Karl Marx se concretizaria, com uma onda revolucionária varrendo o mundo de forma quase espontânea, como resultado do esgotamento do capitalismo e da necessidade de sua substituição por uma forma mais avançada de organização da sociedade.

O ancien régime, no entanto, contou com o braço forte da Alemanha para retomar o controle da situação e massacrar os communards, com as baixas refletindo bem a desigualdade que marcou o enfrentamento entre as tropas da reação (100 mil soldados) e os defensores da primeira república proletária da História (menos de 15 mil milicianos): foram mil os mortos do lado vencedor e 80 mil dentre os perdedores. Ai dos vencidos!
...e as da Comuna de Paris, em 1871.

Marx concluiu que os inexperientes revolucionários haviam sido tímidos demais, deixando, p. ex., de quebrar a máquina burocrática e militar do Estado enquanto podiam. 

E ficou evidenciado que os governos de países capitalistas acudiam prontamente seus congêneres ameaçados por revoluções, enquanto a solidariedade do proletariado internacional demorava a se organizar.

Lênin foi além, priorizando a estruturação de um partido revolucionário duro, que funcionasse com uma disciplina quase militar, apto a assumir a liderança dos trabalhadores nos momentos agudos para direcionar corretamente sua ação. 

Sua concepção vanguardista levava em conta, também, o surgimento de opositores relevantes no campo da esquerda: os adepto do reformismo, para o qual tendia naturalmente a chamada aristocracia proletária (os operários com cargos superiores e salários mais elevados).  

Constatando que a perspectiva de melhorarem progressivamente de vida sob o capitalismo, sem revolução nenhuma, seduzia muitos trabalhadores, Lênin chegou à conclusão de que o proletariado não se compenetraria espontaneamente de que seu papel histórico era o de dar um fim à exploração capitalista: necessitava de uma vanguarda que, participando com ele das lutas por ganhos materiais, lhe fosse incutindo a compreensão de que as eventuais vitórias eram ilusórias e logo se dissipariam, daí a necessidade de uma profunda e definitiva transformação da sociedade para que as conquistas se eternizassem.
Lênin e Trotsky: enormes acertos e alguns erros.
Lênin estava certo em termos de eficácia: só um partido como o Bolchevique conseguiria tomar o poder em novembro de 1917, apesar de contar com efetivos bem menores do que os de seus competidores do campo da esquerda. Em momentos críticos, poucos militantes que sabem o que querem, estão dispostos a irem até o fim e obedecem sem pestanejar a comandantes capazes pesam muito mais do que muita gente confusa, sem grande determinação nem líderes à altura dos acontecimentos.

Mas, a profecia de Trotsky sobre a maldição do vanguardismo, lançada no tempo em que ele ainda se opunha aos bolcheviques, também se revelou correta: "Primeiramente, o partido substitui o proletariado. Depois, o Comitê Central substitui o partido. Finalmente, um tirano substitui o Comitê Central".

O certo é que a Rússia foi se tornando um mero capitalismo de Estado totalitário: 

— seja porque a vanguarda bolchevique incubava mesmo uma nomenklatura ou seja, uma burocracia partidária quase equivalente a uma nova classe privilegiada;

— seja porque a Rússia não estava mesmo pronta para o socialismo e os vitoriosos de 1917 foram obrigados a cumprir, em seguida, muitas tarefas características de uma revolução burguesa, com a duplicidade de objetivos necessariamente causando desvirtuamentos;

— seja porque o proletariado russo, embora aguerrido e heroico, era numericamente muito reduzido, tendo boa parte dos seus melhores filhos tombado na defesa da revolução;
A liberdade guiando o povo (versão 1968)

— seja porque a consolidação do novo regime se deu em condições dramáticas, num terrível isolamento, com a Rússia tendo de, em 1918-1921, resistir sozinha à invasão de tropas de umas 20 nações capitalistas e aos contingentes dos reacionários internos, para depois desenvolver esforços hercúleos no sentido de saltar rapidamente de um país com desenvolvimento tardio para uma nação moderna).

De certa forma, a União Soviética, sob a tosca tirania de Stalin, serviu como espantalho para a propaganda capitalista dissuadir os operários das nações economicamente mais avançadas de seguirem na mesma direção. 

Contrariando a constatação de Marx, segundo quem eram os países mais pujantes que determinavam o destino da humanidade, com as demais sendo arrastados por sua dinâmica, as revoluções seguintes se deram em países pobres, desorganizados por guerras ou ainda emancipando-se da dominação colonial.

E o capitalismo foi aprendendo a lidar de forma cada vez mais eficiente com as várias tentativas vanguardistas que foram surgindo: seja vencer militarmente as guerrilhas urbanas e rurais, seja asfixiar economicamente ou derrubar governantes adversos por meio das Forças Armadas, Judiciário ou Legislativo de seus países.

Mas, a revolta jovem de 1968 na França foi o primeiro indício de que a História não tem fim e, quando algumas portas se fecham, outras se abrem. O capitalismo não tem tudo dominado, nem jamais terá; pelo contrário, marcha em passos rápidos para a extinção, que só vai significar o fim da História profetizada por Francis Fukuyama se a própria espécie humana extinguir-se junto com ele.

A sociedade que desenvolveu ao máximo os meios de comunicação é também a sociedade em que uma simples centelha evolui rapidamente para incêndio, surpreendendo governos e suas polícias.
Uma nova esquerda despontou em 2013. E foi tratada a pontapés pela velha...
Já em 1968, uma onda de paralisações em escolas de Paris evoluiu rapidamente para uma formidável greve geral, fazendo o presidente De Gaulle balançar no cargo, que só conservou graças à boia que o Partido Comunista Francês lhe atirou, mais interessado em manter sua liderança nas entidades sindicais do que em fazer a revolução. 

Merecidamente, ao agir como fura-greves da nova Comuna de Paris (são muito significativas as semelhanças da pauta dos communards de 1871 com a dos congêneres de 1968, ambas inspiradíssimas!), o PCF se condenou à insignificância. Os franceses não são tão condescendentes com relação às atuações desastrosas de seus partidos quanto os esquerdistas brasileiros...

E, nas manifestações contra o capitalismo e suas mazelas que vêm marcando a década atual, incluindo as jornadas de junho de 2013 no Brasil, a pulverização da vanguarda é uma característica comum. Não há força majoritária da esquerda as convocando e conduzindo, mas uma imensidão de células independentes imantadas pelas redes sociais.
Este título se revelará profético?

Fazem lembrar as ondas revolucionárias que, segundo Marx, varreriam o mundo. Dá para imaginarmos que, com a agonia capitalista chegando ao ponto decisivo, uma crise do tipo da imobiliária de 2007/2008 possa não só evoluir para um clash como de 1929, mas também gerar uma reação da sociedade equivalente à Primavera de Paris.

Concordo com Zuenir Ventura: 1968 não terminou. Os fios da História poderão até ser reatados meio século depois, por que não?  

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

SOBRE MÉDICOS, MONSTROS E MILITARES

O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony voltou neste Natal a relembrar o episódio da ceia que um oficial do Exército compassivo proporcionou a intelectuais presos em 1968.

Já o evocara sete anos atrás na Folha Ilustrada mas, nesta época do ano em que nada de mais importante costuma ocorrer, somos mesmo obrigados a remexer o baú em busca de uma reminiscência aproveitável para bisar. 

Vou pegar carona, reproduzindo não só a lembrança do Cony, mas também uma minha, de preso político que não era intelectual nem famoso, mas também topei com militares de bom coração durante minha temporada no inferno.

Comecemos pelo Cony e seu Natal na PE da Vila Militar, que ainda era um quartel normal (só um ano mais tarde iria se transformar na sede do DOI-Codi): 
"...o comandante cujo nome não guardei, homem civilizado e gentil, surpreendeu a mim e ao Joel [Silveira] mandando vir, de sua casa, uma ceia completa, vinho, castanhas, fatias de peru, frutas, um cartão amável desejando não somente um feliz Natal mas uma rápida libertação".
Nas quatro prisões seguintes, entretanto, o clima mudou radicalmente:
"...ficamos conhecendo o outro lado daquela turma que nos prendia. Nem Joel nem eu fomos torturados, mas passávamos a noite ouvindo os gritos dos torturados. 
Na hora das refeições, antes de chegar a comida, chegavam dois tipos de homens diferentes, verdadeiros armários que apontavam as armas enquanto comíamos não a comida normal dos quartéis, mas uma pasta que parecia os restos de outras refeições.

Nenhum diálogo, apenas ameaças. Nem banho de sol, obrigatório pela Convenção de Genebra. Nem visitas, nenhum contato com o mundo exterior, nem mesmo com a família, que não sabia onde estávamos e se estávamos vivos".
Terrorismo de estado atingiu auge com Médici
Traçando um paralelo com a obra clássica de Robert Louis Stevenson, ele avaliou que "a poção mágica do poder" transformou os militares, de médicos em monstros. Supostamente, a partir do AI-5, promulgado em dezembro/1968.

As minhas próprias recordações me levam a considerar um tanto mecânica a análise de Cony. 

Sequestrado (aquilo lá nem de longe respeitava os trâmites legais de uma detenção) em abril/1970, eu só deveria ter conhecido monstros. Mas, restavam alguns médicos.

E não só os bons recrutas que, compadecidos de nossa situação, arriscavam-se a severas punições para nos prestarem pequenos favores e até davam um jeito de aumentar a quantidade de comida no bandejão que nos serviam, por perceberem que estávamos desnutridos.

Mesmo entre oficiais encontrávamos um pouco de solidariedade; com maior frequência quando se tratava de  veteranos que tinham aprendido seu ofício em tempos menos bicudos. Para estes,  honra militar  não era uma expressão em desuso.

Quem passara pelos campos de batalha da 2ª Guerra Mundial, geralmente não via com bons olhos a brutalidade amoral dos novos capitães e tenentes, dispostos a tudo para conseguirem promoções e prêmios. Davam a entender, contudo, que eram impotentes para evitar os excessos. A bestialidade viera para ficar.
Este acidente despertou suspeitas à época
A velha guarda castellista (os seguidores de Castello Branco, o primeiro general ditador, que ingenuamente pretendia devolver o poder aos civis após uma limpeza de área autoritária) torcia o nariz, mas era só o que podia fazer, pois perdera a parada na disputa interna da caserna. A linha dura apertava cada vez mais o torniquete.

Quando foi relaxada a primeira das três prisões preventivas que me mantinham prisioneiro, transferiram-me do quartel da PE da Vila Militar, um dos piores que existiam, para o que, por contraste, pareceu-me um hotel: o Regimento Escola de Cavalaria.

TEMPO DE OGROS

Como companheiro de quarto – não era exatamente uma cela, embora tivesse grades na janela –, um professor que não havia participado da luta armada mas, mesmo assim, levara choques elétricos tão terríveis na PE da Vila Militar que tinha os ossos dos dedos da mão expostos.

Deduzi que ambos sairíamos em breve. Os militares se preocupavam com tais detalhes, como o de não despejar nas ruas pessoas que parecessem ter saído de um campo de concentração nazista. Representariam a prova viva do que sucedia nos porões. Então, costumavam recuperar um pouco os presos, fisica e psicologicamente, às vésperas da libertação.
Não fiquei agradecido pelo tratamento menos desumano. Refleti que os oficiais médicos estavam desempenhando um papel determinado pelos alto comando, da mesma forma que seus colegas do DOI-Codi esmeravam-se em representar ogros.

Como única ressalva, eu admitia que os oficiais se direcionassem para a Cavalaria exatamente por terem um perfil mais afável (tanto que gostavam de animais), ao passo que iam para a infantaria os naturalmente insensíveis; e os piores deles, para a Polícia do Exército. Então, nos três casos, a escolha da unidade levava em conta o physique du rôle.

Mas, houve um oficial que me pareceu ir além do script: o comandante do regimento, coronel Sebastião José Ramos de Castro, sintomaticamente um veterano da Força Expedicionária Brasileira que foi à Europa lutar contra o nazi-fascismo.

Em dezembro/1969, as visitas dos parentes de presos políticos estavam todas suspensas na Vila Militar do RJ, em função do sequestro do embaixador suíço. O cel. Castro abriu-nos uma exceção no Natal. Meus pais ficaram comovidos, pois a festa estaria estragada para eles se não vissem o filho único.

Fiquei com a impressão de ter sido uma decisão pessoal, não uma encenação a mais. O jeitão, a forma de falar, o tratamento respeitoso adotado com seus subalternos, tudo naquele oficial compunha a imagem de homem digno, capaz de uma atitude dessas.

Voltando ao dr. Jeckyll e Mr. Hide, faz sentido supor que, mesmo no pior momento do terrorismo de estado, as Forças Armadas continuassem tendo seus médicos, além dos monstros (que davam muito mais na vista). 

E, principalmente, indivíduos comuns, que não eram uma coisa nem outra, mas perceberam que, naquele momento, seus interesses estariam melhor servidos se deixassem aflorar as componentes monstruosas de sua personalidade, pois era isto que deles se esperava.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

UM ÓTIMO FILME DO GODARD E UMA LEMBRANÇA INUSITADA DOS ANOS QUE VIVEMOS PERIGOSAMENTE

O desprezo (1963) é um dos grandes filmes da fase áurea de Jean-Luc Godard, que transpôs para as telas uma história de outro talento superlativo das artes, o escritor Alberto Moravia.

Finalmente disponibilizado no Youtube, permitindo-me acrescentá-lo aos filmes para ver no blogue, mostra um casal perfeito se desconstruindo aos poucos por força do caráter imperfeito do marido, que não só trai suas convicções pessoais, como também decepciona terrivelmente a mulher por querer aproveitar de qualquer maneira uma grande oportunidade profissional.

Eis um bom resumo de Marcelo Hessel, no site Omelete:
"O filme foca a trajetória de um roteirista, Paul Javal (Michel Piccoli), casado com uma ex-datilógrafa, Camille (Brigitte Bardot) e responsável por alguns scripts de sucesso. Tudo começa na Cinecittá italiana, a partir do momento em que Paul recebe o pedido do produtor Jerry Prokosch (Jack Palance, deliciosamente caricatural) para ajudar, em caráter de emergência, a reescrever o roteiro de um filme. 
Godard e BB durante as filmagens
Um legítimo executivo de Hollywood, o norte-americano Jerry anda descontente com o uso que o diretor austríaco Fritz Lang (a lenda em pessoa, numa interpretação iluminada, de tom professoral) faz de seu orçamento, na conversão às telas da Odisseia, de Homero.  
Lang defende que a epopeia grega deva obedecer ao texto original de 3 mil anos atrás, mas Jerry considera o resultado, estacionado no meio das filmagens, absolutamente imprestável.
Longe de ousar desrespeitar a obra do mestre Lang, Paul aceita o serviço por dinheiro, uma vez que o casal ainda paga as prestações de seu novo apartamento. O roteirista só não contava com os galanteios de Jerry para cima de Camille, o estopim do verdadeiro conflito da película".
Minhas lembranças do filme vão além da arte cinematográfica, pois incluem acontecimentos inusitados na minha trajetória de militante revolucionário.

Depois de ter sido um dos sete participantes do racha ocorrido no congresso da VAR-Palmares de outubro de 1969, voltei de Teresópolis com a incumbência de expor aos militantes de São Paulo os motivos de havermos decidido recriar a VPR, em reuniões nas quais a posição contrária era apresentada por Antonio Roberto Espinosa.
Devanir: metalúrgico do ABC que se tornaria um dos guerrilheiros mais caçados pela repressão.
Como eu era muito procurado pela Oban e a VPR ainda estava se reconstituindo, sem aparelho para me abrigar, ficou combinado que utilizaria a rede da VAR. A solidariedade revolucionária, em tese, prevalecia sobre as disputas entre nós mesmos.

Depois de duas dessas reuniões, contudo, o companheiro da VAR que tinha a incumbência de me recolher em algum local da cidade simplesmente me abandonou: não compareceu ao ponto nem à alternativa (fixada, se bem me lembro, para uma hora depois).

Como eu era levado e retirado do aparelho olhando disciplinadamente para o chão do carro, não tinha a mínima condição de o localizar. Meu único documento era um título de eleitor com nome falso, facílimo de falsificar. Os hotéis estavam muito vigiados. 

De quebra, meu ponto seguinte com a VPR estava marcado para alguns dias à frente e não previmos uma opção para emergências. Fiquei num mato sem cachorro.

Caminhando a esmo pelo centro de São Paulo, por uma incrível coincidência dei de cara com o Devanir José de Carvalho, que já conhecia de outra ocasião. Excelente companheiro, ele imediatamente me ofereceu guarida num aparelho do seu MRT.

À noite, contudo, o grupo saiu para realizar uma ação armada (ofereci-me para ir junto, mas o Devanir respondeu que não saberia como explicar à VPR se algo de mau acontecesse comigo) e despertou suspeita no trajeto, acabando por serem trocados tiros com uma viatura policial.
O tiroteio se dera relativamente perto do aparelho, então ele teve de ser abandonado às pressas. Separamo-nos. Vi-me de manhãzinha no centro da cidade, tendo de esperar o dia inteiro para me encontrar, às 20h30, com alguém da VPR, pois o bom Devanir conseguira acertar um ponto mais rápido para mim.

Peguei ônibus para cá e para lá, demorei uma eternidade almoçando e, às 14 horas, resolvi fazer hora no cine Coral (era na rua 7 de abril, ao lado da praça da República), que exibia, exatamente, O desprezo.

Como mal dormira à noite, devo ter pegado no sono uns dez minutos depois de as luzes se apagarem. Acordei quando elas se acenderam no final da sessão, sobressaltado com a possibilidade de o revólver que eu carregava sob o braço haver ficado à mostra. Não ficara.

Naquele tempo o ingresso me dava direito a quantas sessões eu quisesse, então permaneci na das 16h e na das 18h, sempre da mesma maneira: via o comecinho do filme e apagava logo depois da sequência em que la Bardot exibia pela primeira vez seu belo bumbum para o distinto público. 

Só assistiria pra valer a O desprezo muito tempo depois.

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