quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O DESEMPREGO DO EMPREGO

"O capital e o trabalho não são realidades opostas: 
trabalho é uma atividade específica do 
capitalismo... Não se trata, pois, de 
libertar o trabalho, mas de nos
libertarmos do trabalho" 
(Manifesto contra o trabalho
Grupo Krisis, Antígona) 
Se não há emprego suficiente para todos, ou seja, se já não há trabalho abstrato produtor de valor ao nível da empregabilidade plena para os indivíduos sociais, a única forma de se obter o sustento material pleno da coletividade é a superação dessa forma de mediação social e sua substituição por outra, capaz de promover a solução do problema. 

Tal conclusão, por mais óbvia que seja, não é aceita pela política (de direita, de esquerda e de qualquer posição ideológico-geográfica), simplesmente porque significaria a sua superação enquanto instrumento institucional de manutenção da ordem mercantil, e, mais do que isto, a superação da própria ordem mercantil e seus construtos institucionais (o Estado e seus poderes executivo, legislativo e judiciário, e o próprio conteúdo do direito, etc.). 

De tanto nos acostumarmos com a ideia inculcada nas nossas mentes por todas as formas de massificação direta ou sublinear, da virtude de se trabalhar para ganhar dinheiro e com ele se adquirir os bens e serviços necessários à vida, o indivíduo social é levado a crer que tal mecanismo de mediação social é ontológico, ou seja, que sempre existiu e sempre existirá, como um ganho da marcha irreversível da civilização, tal qual a descoberta do fogo e, muito tempo depois, da energia); ou como a necessidade de se tomar água, comer ou satisfazer suas necessidades fisiológicas (essas sim, inerentes à condição da vida humana).  

É obvio, contudo, que a vida social já teve outros parâmetros de mediação social, e pode, agora, voltar a tê-los de modos muito mais eficazes e adequados ao estágio do desenvolvimento do saber atual.   

O trabalho abstrato é uma categoria social recente na história da humanidade, diferentemente da atividade de produção humana de bens e serviços necessários à vida, a que Marx se referiu como interação metabólica do cérebro, nervos e músculos do ser humano com a natureza para dela extrair o seu sustento. Tal categoria social é imanente à produção de valor, que é a gênese do capitalismo. Assim, o trabalho abstrato é uma categoria capitalista, e sob outra forma de relação social ela deixará de existir. 

Aproximamo-nos celeremente desse momento, cujos efeitos clamam pela sua própria superação, exaurido que está como modo eficaz de mediação social. As guerras e convulsões sociais hoje existentes, mais acentuadas do que nunca, que o digam! 

A humanidade, sem se aperceber da negatividade da substituição da partilha comunal primitiva e da substituição da troca generosa de excedentes de produção pela troca quantificada, na qual somente se trocam produtos de qualidades e quantidades diferenciadas a partir do critério de dificuldade de produção de cada produto (leia-se tempo de duração do esforço humano para a produção de bens), estava, nesse ato, criando a ideia de valor, uma representação numérica, abstrata, para mensurar o tempo de duração do esforço humano como valor, que assim, se corporificava em um objeto, transformando-o em mercadoria (uma abstração tornada real). 

O próprio trabalho abstrato, ou força de trabalho, passava assim a ser, juntamente com o objeto produzido, também uma mercadoria, ambas com personalidades concreta e abstrata. 

A troca quantificada (chamada de escambo) foi o embrião da concepção de valor como medida abstrata de mensuração, e sem que fosse percebido o seu conteúdo negativo, pois parecia ser algo justo e saudável, mas que na verdade trazia em si o vírus da segregação social já aí inoculado; os fortes e hábeis como produtores seriam socialmente dominantes e os demais membros da sociedade, dominados. 

Foi o curso do desenvolvimento da troca quantificada o que gerou a ideia de escravização do ser humano como máquina de produção. À medida que o poder passou a se expressar na acumulação de riqueza material como embrião da riqueza abstrata (unidades de valor) com capacidade de troca por diversos bens, a escravização do ser humano como máquina de produção passou a ser fonte de poder e a tônica da produção social; as antigas guerras por território passaram a ter outro leitmotiv, qual fosse a vitória para a subjugação dos vencidos como escravos. 

A potencialização das guerras foi, portanto, a primeira resultante negativa da ideia de acumulação de riqueza material e abstrata da humanidade. O valor é genocida. 

O segundo movimento escravista, como decorrência do primeiro, que durou cerca de 3 milênios para se consolidar, foi o desenvolvimento do modo de produção mercantil a partir do século XV, que exigia a forma-valor como modo de mediação social em larga escala, sepultando as relações pré-capitalistas de então e endeusando o trabalho abstrato, sua substância primária, como fonte de dignidade humana: o mais sutil engodo de defesa da libertação humana da história. 

A revolução iluminista francesa do final do século XVIII e a revolução industrial inglesa do século XIX foram os pressupostos dessa virada da escravização direta para a escravização pelo trabalho abstrato que perdura até os decadentes dias atuais, além do Estado nacional moderno, cujos raios verdadeiramente luminosos de sua superação já estão prenunciando a aurora de uma vida nova e socialmente justa (se superarmos a barbárie em curso).
        
Como a forma-valor se funda no trabalho abstrato como forma abstrata de existência escravista e como o trabalho abstrato está se tornando supérfluo graças ao desenvolvimento da tecnologia de produção, no qual o ser humano passou a ser um mero operador de máquinas sofisticadas e computadores em sua grande maioria, reduzindo o valor agregado das mercadorias a um mínimo, e com tendência a zero (embora isso não possa ocorrer, pois, antes, sucederia uma inviabilidade total da sociabilidade pela forma mercantil), a lógica de mediação social pela forma valor evidencia a sua impraticabilidade expressa no momento de convulsão social bárbara sob o qual vivemos.

Há uma saída, e não é o aeroporto. Basta que nos convençamos de que temos de produzir para distribuir equitativamente tudo que for produzido e usando todo o saber adquirido pela humanidade e os recursos naturais de modo racional e ecologicamente sustentáveis nessa produção. 
Assim, nós transformaremos o desespero do desemprego em desemprego do desespero do emprego, com perdão do trocadilho infame, mas, sem dúvida, oportuno. 
(por Dalton Rosado)

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