sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

BALANÇO DE 2016: A PERDA FOI TOTAL E TEMOS DE RENASCER DAS CINZAS!

Sinceramente, eu gostaria de poder oferecer-lhes previsões otimistas para 2017,  mas há algo no meu caráter que me obriga a dizer sempre as verdades desagradáveis, em vez de semear ilusões convenientes. Lamento.

Sinto-me como o grande Sérgio Ricardo, que, no auge da ditadura militar, se desculpava: "Ai, a grande tormenta roubou / os versos que eu tinha pra lhe dizer / e, por mais que eu procure buscar / palavras perdidas no ar, / vem a onda pra me impedir / de rimar".
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E o pior é que, desta vez, nem sequer estamos manietados pela força bruta, mas sim colhendo os frutos dos erros terríveis que cometemos após sairmos da ditadura militar com aura de heroísmo e martírio, passando então a dilapidar insensivelmente o patrimônio moral acumulado à custa do sacrifício de tantos companheiros inesquecíveis e imprescindíveis. 

E, como tivemos responsabilidade imensa na virada da maré contra nós, agora é nosso dever combatermos com todas as forças a arrebentação dessa nova onda direitista que se abate sobre o Brasil (e sobre o planeta).
Quem seriam os líderes hoje? 
A recessão brasileira perdurará ao longo do próximo semestre e, na melhor das hipóteses, a coisa só começará a melhorar, timidamente, após as férias escolares. Como já temos mais de 12 milhões de desempregados, a situação é dramática ao extremo.

Meio mandato presidencial findo, a possibilidade de realização de eleições direitas em 2017 –seja visando escolher alguém para concluir o mandato de Dilma/Temer, seja antecipando o pleito de 2018– é de operacionalização dificílima. 

Canso de lembrar que os brasileiros, em 1984, estavam há 23 anos sem eleger presidente da República, enquanto hoje vêm de eleger há dois anos uma presidente desastrosa. E que a esquerda então estava renascendo e hoje se encontra no fundo do poço. 

Daí serem quiméricas as esperanças de que o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal facilitem as coisas para a viabilização de uma solução heterodoxa e nada leva a crer que teriam as ruas a pressioná-los com um clamor tão contundente quanto o de 1984 (o qual, mesmo assim, foi ignorado!).

Segundo a letra da Constituição, se Michel Temer tiver por qualquer motivo de abandonar o governo a partir do primeiro minuto de 2017, os 594 senadores e deputados federais é que escolherão seu substituto, para cumprir o restante do mandato atual. 

Trata-se de uma situação do tipo se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. E, ainda recorrendo aos velhos chavões, podemos dizer que a direita está com a faca e o queijo nas mãos. tendo tanto a opção de manter Temer quanto a de trocá-lo por algum tucano (utilizando os préstimos do TSE e do Congresso).

Não quero, contudo, encerrar este texto de forma tão depressiva. Como revolucionário, apostarei sempre na chance que os homens têm de mudar o rumo dos acontecimentos, mesmo quando a correlação de forças é das mais adversas. 

O voluntarismo, contudo, tem limites. Então, depois de uma derrota tão acachapante como a de 2016 (em muitos aspectos pior ainda que a de 1964!), insistir no mais do mesmo só levará a esquerda a maximizar seus prejuízos, marchando para a irrelevância.

Precisa fazer a autocrítica da qual foge há sete meses, identificando os erros estratégicos e táticos cometidos, abandonando as definições que não passaram pelo teste da prática, assumindo posturas bem diferentes e escolhendo novas lideranças para substituir as que se descredenciaram fragorosamente.

Lembro-me de minha meninice, quando assistia aos teipes das partidas da Seleção Brasileira no Mundial de 1962 e ficava curioso sobre uma frase que aparecia com destaque no placar do estádio de Viña del Mar: "¡Porque nada tenemos, lo haremos todo!". 

Soube depois que um terremoto destruíra parte considerável da infra-estrutura chilena para a realização da Copa, mas o país resistiu a todas as pressões para dela abrir mão, dispondo-se a reconstruir tudo nos 25 meses que faltavam. A bela frase de um dirigente esportivo tornou-se o lema da titânica mobilização dos andinos, que acabaram as obras no próprio dia do pontapé inicial...

É como a esquerda precisa assumir que está neste momento: nada lhe restou de aproveitável e precisa reconstruir tudo.

Se o fizer, poderá, sim, dar a volta por cima, em médio prazo. 

Mas, só vai ter futuro reassumindo-se como força revolucionária, pois as contradições do capitalismo estão conduzindo a um momento decisivo na história da humanidade, que poderá ser tanto a superação de um sistema totalmente exaurido enquanto motor do progresso e da felicidade humana, quanto a própria extinção da nossa espécie. 

O certo é que os tempos do populismo e do reformismo terminaram definitivamente, sem deixar saudades. 

E que, para cumprirmos tanto nosso dever como seres humanos quanto o compromisso que temos com relação aos pósteros, precisamos fazer muito mais do que fizemos até agora.

Começando por renascer das cinzas, a exortação do poeta Ednardo que adoto como minha mensagem final.

ASSIM FALOU O HOROSCOPISTA ACIDENTAL

"O ano de 2017 vai enriquecer a sua personalidade. Você terá mais força, mais persistência e mais equilíbrio. Um bom ano para encontrar a paz interior. Até setembro haverá grande necessidade de autoaperfeiçoamento no plano global e um aumento de consciência coletiva. Muitos de nós vamos nos conseguir fazer entender, reivindicar e abrir uma nova era."
(horóscopo pinçado na web: espertalhões
falam sempre o que os otários querem ouvir)
Ano novo, esperançosa temporada de se buscar novos e floridos caminhos.

Sucede que, desde que pela primeira vez senti cheiro das donzelas, em inacreditáveis verdes anos, venho empregando um procedimento científico para ver como são agora as amazonas de tal ou qual signo, em relação ao meu. 

Sempre fiz questão de combinar com elas. Pois não é uma vereda cheia de flores? Hoje, empoeirado pelo chão desértico de tantos atalhos explorados, acabei por concluir: quem ama e pensa, não ama, pensa. 

O procedimento científico que usei é a perseverante observação, complementada pela comparação, indução e dedução. 

Ridículo. Homem de sucesso com as mulheres é aquele alto, topetão, voz de trovão, de formas agradáveis, proporções harmônicas, graça exemplar da evolução das espécies, de Charles Darwin.

Então. Antes de começar namoro, os da minha espécie inferior se defendiam esquadrinhando os signos. 

Meu bondoso e paciente pai me disse que ele poderia ficar pirado um dia, neste mundo qualquer um está sujeito; mas não seria fazendo essa pesquisa, desde os verdes anos até os maduros. 

Pior era um amigo meu, da Mooca, darwiniano legítimo, verdade, cara do ator italiano Marcello Mastroianni melhorado. Ele contava piadas para as namoradas e quando a eleita do seu coração abria a boca para rir, se exibisse um resquício de cárie anti-darwiniana no mais longínquo molar, o namoro não engatilhava.    

Então. É a evolução das espécies, ora.

Curiosamente, nas minhas observações, via uma mulher de tal ou qual signo, virtuosa, e uma outra, do mesmo signo, nem tanto. Via um colega sacerdote de um signo e outro, do mesmo signo, com problemas com a polícia. Um violento de um signo e outro um carneirinho do mesmo signo. Alguns com muita sorte de um signo e outros do mesmo signo, nem tanto. 

Conclusão científica: o signo não tem nada a ver com o caráter nem com a lei das probabilidades de bem suceder. Deve ter algo a ver com o humor.

Minhas observações mostram, sim, que o signo não pode determinar o caráter de alguém. Se não, vejamos. 
Acredite quem quiser...
Deduções: o destruidor de vidas Hitler era de Áries. Alma doce, mundialmente querido, Charles Chaplin, um dos maiores críticos do próprio Hitler, também era de Áries. Este que vos aborrece escrevendo estas mal traçadas linhas, igualmente é de Áries. Desato a soluçar até em inauguração de posto de gasolina.

Dizer que, por carregar nas costas tal ou qual signo, alguém é bondoso ou mau, líder ou liderado, honesto ou desonesto, que pode viajar de avião ou não pode, que deve ser prudente ao volante, que está sujeito a gripe, que vai receber uma carta, que precisa ficar calmo, resistir às tentações e que terá negócios fáceis com Júpiter na triangulação, mas precisa cuidar da alimentação, é dose. Tomada de cena: sorrisinho crítico de quem ouve falar nessas coisas.

No entanto, minhas honradas investigações me levaram a uma conclusão muito séria. Trata-se mais de uma percepção e isto não se explica cientificamente.Tenho a minha percepção e vocês têm as suas. 
Vejam bem: somos influenciados por tudo o que nos cerca, palavras, atitudes, o berro no ouvido, as belezas naturais, a cruel força bruta, os humanos bondosos por natureza, o céu bordado de estrelas, a água transparente do mar, o furacão, o regato, essa lindeza de águas límpidas a descer cambaleando pelas matas como louco, qual bêbado deixando o bar de madrugada.

Quando faz sol, temos um humor. Quando não faz, outro. Quando é lua cheia, um. Quando não, outro. Vivemos ou não hipnotizados por tudo o que nos cerca? Nosso humor não estaria condicionado a tais forças, esses enormes globos flutuando no cosmo, girando, afastando-se, aproximando-se? Não estaria o nosso humor influenciado pela criação ao nosso redor? 

Então. As almas que nascem sob determinadas influências, em tal ou qual momento, com tal e qual lua, com tal e qual planeta, não seriam, talvez, possuidoras de tal ou qual fluído, uma energia, uma atmosfera (achei!) que pode ou não combinar com as das outras pessoas? Não é complicado.

Então. As atmosferas se entrechocariam ou se afinariam, dando bom casamento ou não, boas amizades ou não, relações comerciais ricas ou não. Mas daí a dizer, como ouvi de um amigo, que por ser de tal signo tinha direito a sete mulheres, é o fim do mundo, embora um aprazível fim do mundo. O que o astrólogo dizia é que no planeta Terra existe uma proporção de sete mulheres para cada homem, e desta bênção não se pode reclamar.

Então. Minha brincalhona pesquisa revela que, se uma pessoa pôs tanta amargura em teu pobre coração, estimado leitor, ou leitora, sejam quais forem os seus signos, as suas atmosferas não se casaram. O certo, então, seria cada um procurar a sua atmosfera gêmea, ou trigêmea, pouco importa, sem se amargurar.

Quanto ao meu signo, nas minhas observações de décadas, constatei que num ponto os horoscopistas parecem ter alguma razão: eles dizem que Áries combina com Aquário, Sagitário e Leão.  Destes três, para mim, tem sido melhor Leão. No entanto, já ouvi mulher de Leão dizer que detesta Áries. Durma com um barulho desses.

Com mulher de Leão, eu sou mais eu, embora já tenha combinado, e bem, e as pesquisas não explicam, com Aquário, Áries, Gêmeos, Capricórnio, Câncer, Libra, Touro. Com todos os signos. 

E com que excelência coexisto com a doce mulher de Touro! Quer saber mais? Sabe aquele olhar estonteante, aqueles lábios de seda? Essa hipnótica expressão do rosto feminino acaba com a minha pesquisa, essa é que é a verdade. Mas que signo!

Estas questões não devem preocupá-los, amáveis leitores e leitoras, sejam vocês de tal ou qual signo. Com a Lua minguante em sextil a Júpiter e Saturno, nada a temer em 2017.  

Mas, ouçam os astros! Eles, os astros, estão certos em recomendar cautela ao manobrar o carro em ruas movimentadas e ficar esperto ao atravessar a Radial Leste. 
(por Apollo Natali)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

DÚVIDA HAMLETIANA NO REVEILLON: DEVEMOS ENTRAR EM 2017 COM OTIMISMO OU PESSIMISMO?

"Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
em nosso espírito sofrer pedras e flechas
com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
ou insurgir-nos contra um mar de provocações
e em luta pôr-lhes fim?" (William Shakespeare)

"A ambição universal do homem 
é colher o que não plantou"
(Adam Smith, economista clássico)
Dizem que o otimista é um crente da esperança, e que o pessimista o é da desesperança. Ambos têm visões distorcidas da realidade. Diz-se que, quando veem um copo com água pela metade, os otimistas afirmam estar meio cheio e os pessimistas, meio vazio. As visões de ambos estão parcialmente corretas, e este é o problema: a parcialidade.

Os críticos da vida mercantil no atual estágio de degringola mundial, bem como os defensores da dita cuja, não deveriam fundamentar as suas críticas ou defesas em visões parciais, fruto de suas crenças ou desejos, nem mesmo como ilações dos fatos sociais imediatos (os falsos milagres brasileiros que o digam), mas analisarmos as questões estruturais que estão subjacentes a esses fatos. 

Os músicos do Titanic que continuavam a tocar enquanto o navio afundava, tinham uma visão de estabilidade momentânea, mas numa realidade de tragédia iminente. 

Nestes dias de Natal, nos quais comumente nos reunimos com familiares e amigos, nós costumamos ouvir análises e visões diferenciadas sobre os mesmos fatos sociais, e encontramos sempre os otimistas e pessimistas quanto ao ano de 2017. 

Mas, o que devemos mesmo esperar de 2017, independentemente de sermos otimistas ou pessimistas?

As causas que estão determinando as dificuldades sociais mundo afora, vêm sendo atacadas com medicamentos que se constituem em antitérmicos que podem debelar a febre em alguns organismos, mas não são capazes de anular a infecção. Daí, em termos de perspectivas para 2017, não podermos acreditar que os problemas venham a ser resolvidos, pois inexiste uma perspectiva de extirparem-se as causas determinantes da debacle social mundial. 

Não é uma questão de ser pessimista ou otimista, mas de observarmos que os remédios utilizados estão contaminados pelo vírus causador da infecção. Quer-se utilizar mecanismos para o combate à crise do capitalismo que são imanentes ao próprio capitalismo num estágio de evolução dos modos de produção mercantil que atingiu o seu ponto de saturação. 

Os remédios usados são antitérmicos, e é urgente que pensemos em pró-bióticos da vida (ou antibióticos à exploração) capazes de extirpar a infecção, o que não é feito por inconsciência social dos servidores voluntários do sistema, cujo pensar está aprisionado pela lógica fetichista do sistema produtor de mercadorias.     

Tanto os otimistas como os pessimistas não conseguem raciocinar fora da lógica de mercado e, assim, as suas conclusões estão contaminadas por um erro original essencial, que os levarão a equívocos de avaliação, quaisquer que sejam elas. É que a base da lógica mercantil sobre a qual eles elaboram os seus otimismos ou pessimismos está equivocada.
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AS PREVISÕES (DE ONTEM E HOJE) 
DO PIB BRASILEIRO PARA 2017
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As agências de rating, como Standard Poor’s e outras, não foram capazes de prever o óbvio na crise dos subprime de 2008 nos Estados Unidos (financiamentos com hipotecas de imóveis avaliados fora da realidade dos custos de construção, graças à bolha especulativa do mercado imobiliário/creditício). 

Isto se deveu a dois fatores:

  • a crença ilusória de que o mercado pode crescer indefinidamente numa curva ascendente;
  • o comprometimento com o mercado financeiro no sentido de lhe emprestar credibilidade. 
Então, meses antes do estouro do sistema financeiro, ditas agências passavam batidas pela incapacidade de solvência das hipotecas e falta de liquidez do mercado imobiliário, que somente não levou o sistema financeiro mundial à bancarrota graças ao socorro financeiro estatal com base em moeda sem lastro e títulos da dívida pública, cujos efeitos colaterais ainda estão renitentemente presentes.      

Tudo no sistema financeiro é um cassino no qual os castelos de cartas tendem a desabar a qualquer momento, principalmente agora, quando um dono de cassino se torna presidente da meca do capitalismo. 

As previsões do PIB brasileiro do primeiro momento do governo do presidente Temerário foram igualmente inconsistentes. 

Os bancos e consultorias se apressaram em crer, sem nenhuma base científica, fiando-se no otimismo e na confiança dos seus pares no governo, que o ano de 2017 seria substancialmente diferente de 2016. Até mesmo para 2016 já previam certa recuperação com melhora dos números do PIB brasileiro.

O banco Itaú elevou a perspectiva de crescimento do PIB de 2017 de 0,3% para 1,0%, afirmando que o desencalhe da produção industrial promoveria tal crescimento. O que se viu foi o aumento da contínua queda da produção industrial, que no último trimestre ficou em -0,8%, após sete quedas trimestrais consecutivas.

O BNP, por meio do seu economista chefe Marcelo Carvalho, apostou num crescimento do PIB de 2017 em 2,0%, arguindo que “a combinação de política fiscal e monetária mais saudável pode impulsionar o sentimento do mercado e estimular a confiança local, abrindo caminho para uma recuperação do crescimento”. 

Na consultoria Tendências, Alessandra Ribeiro apostou num crescimento de 2017 de 1,2%; e a MB Associados também embarcou na onda do viés de crescimento. 

Até o FMI fez coro, ainda que menos otimista: sua presidente Christine Lagarde afirmou que há uma previsão de crescimento de 0,5% do PIB brasileiro para 2017. 

Entretanto, a realidade, que não costuma conviver com palpites otimistas de quem aposta na perenidade do capitalismo, contraria as estatísticas dos organismos financeiros e institucionais. O pior é que a realidade impõe o desespero àqueles que estão na base da pirâmide social como resultado da inconsistência de um sistema que atingiu o seu limite interno de expansão.

Não sou otimista, nem tampouco pessimista, pois prefiro fincar os meus pés e pensamentos na simplicidade do raciocínio de que podemos construir um mundo melhor, tanto do ponto de vista do suprimento das necessidades materiais, como dos valores verdadeiramente humanos.

Tais sentimentos e construções não podem advir de um modo concorrencial de vida, no qual todos sejam adversários de todos, mas sim de um agir e pensar solidário, no qual o meu semelhante seja fonte de nossas mútuas redenções. (por Dalton Rosado)

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

APOLLO NATALI: "INTELECTUAL DE RUA".

Foragido das páginas dos livros da Festa Literária Internacional de Paraty, Napoleão Bonaparte caminha pelas ruas de pedras da velha cidade do litoral fluminense.

Em terras brasileiras, entre o mar e as montanhas, o general francês está a remoer palavras do sábio do Eclesiastes, seu grato consolo no exílio de Santa Helena.

Cabeça baixa, mão esquerda na barriga. A direita à frente, ergue o texto bíblico:

– Tudo tem seu tempo. Tempo de guerra e tempo de paz. Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens. Veio um grande rei, sitiou-a e levantou contra ela  grandes baluartes. Encontrou-se nela um homem pobre, porém sábio, que a livrou com sua sabedoria. Então, melhor a sabedoria do que a força.

Hoje, pisando o chão de Paraty, Napoleão acredita. Levas de fugitivos das páginas dos livros acompanham em seu passeio o guerreiro derrotado. Desgarrados das prateleiras, ganham as ruas mil corações partidos de desventuradas histórias, heróis, vilões, poetas, cada qual com sua dor.

Beirais, gradis coloniais, o velho casario da cidadezinha histórica que completará três séculos e meio de existência neste ano de 2017, antigo refúgio de piratas, todos espiam a passeata dos fantasmas saídos dos livros que um dia vestiram carne. Agora eles são apenas histórias e vagueiam no festival internacional da imaginação.
Nessa atmosfera de cultura, sob os holofotes da imprensa de todo o mundo, entre casas antigas, sol forte, move-se, de carne e osso, o paulistano Cláudio. 

De imperador, só o nome.  Cláudio Bongiovani perambula pelas esquinas e vielas de Paraty a vender a revista Ocas, iniciais da Organização Civil de Ação Social, com sede no bairro do Brás, em São Paulo. Custa 3 reais. Um real para Ocas, 2 reais para ele. Ótimo. É dom de Deus que possa o homem comer, beber e desfrutar o bem de todo o seu trabalho, alegra-se o rei sábio da Bíblia.

É rotina do imperador Cláudio vender a Ocas em um ponto fixo na calçada movimentada do Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista. Desta vez, esperançoso, se pôs a plantar sua revista de cultura também no meio intelectual da Flip. Certo, imperador. Semeia pela manhã a tua semente e à tarde não repouses a tua mão, porque não sabes qual prosperará, se esta, se aquela, ou se ambas igualmente, adverte o Eclesiastes.

Em suas escapadas ele vagueia até pela Europa, onde conhece algumas das 20 revistas semelhantes à Ocas, que dão oportunidade de mudança na vida das pessoas em situação de rua. A interação decorrente da compra e venda dessas publicações permite aos vendedores estabelecer contatos, ganhar algum dinheiro e dar novos passos de reintegração.
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ACHEI!
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Na rede de uma dúzia de computadores da Ocas em que busca inclusão digital, Cláudio achou mais uma feira literária na qual vai poder vender suas revistas. É em Bauru. Vai lá correndo fazer seus negócios.

Vendeu um monte, em Paraty. Ganhou bom dinheiro. Nada como trabalhar e poder pagar sua própria roupa, comida, tênis, agasalho. Hoje pode até pagar um pequeno aluguel, numa das 300 caixas de  fósforo dos 24 andares do edifício Esplanada, na Várzea do Glicério.

No chão do seu sala-e-quarto, na colmeia de favos todos iguais do prédio, uma esteira, uma escrivaninha velha, uma cadeira. Não mais o disputar lugar na calçada, no viaduto, na laje. Não mais os sobressaltos da chuva, do frio, da fome, do caminhar a esmo. Grudado na porta do lar-doce-lar, o letreiro de papel conta sua história em três palavras: sobrevivente da rua. Maravilha um teto, uma torneira, um chuveiro quente, uma esteira.

Livro de cabeceira, Um, de Richard Bach. Trata de uma viagem de alguém para dentro de si mesmo, 10 anos passados e 50 que virão. A mensagem: “Não há problemas que não lhe tragam nas mãos um presente”. Bach é autor esotérico de Fernão Capelo Gaivota, Ilusões, A ponte para o sempre.

Nos desfiles da imaginação de suas feiras culturais, tempo de os grandes vultos dos paraísos perdidos e das divinas e humanas comédias se desgarrar dos livros para ganhar as ruas,  Cláudio se entristece ao ver a realidade negar o que a imaginação promete. 

Onde estão os heróis,  os poetas, os guerreiros, os gênios, os santos de toda essa literatura, capazes de apagar a lembrança do automóvel, uma bola de fogo a se despedaçar contra o caminhão na frustrada ultrapassagem de uma carreta, dizimando sua família? Carbonizados Yuri, 3 anos; Yago, 5; sua mulher Maria, sobrinho, cunhado, sogra. 
Voltavam da feira do milho em Catanduva. No dia do adeus, caixões fechados. Mudo, acompanha o despejo nas covas dos restos mortais dos seus tesouros. Vira as costas, sai a andar sem direção, horas e horas, dias inteiros, semanas, meses, anos. Desde o ano de Nosso Senhor de 2001. E olha o tamanho deste mundo.

A vida precisa ser vivida. Perambula em círculos por São Paulo. Sol, chuva, vento, calor, frio, fome, solidão. Entre a floresta de torres de concreto a alcançar o céu da terceira maior cidade do mundo, vence a Paulista, sobe e desce a Consolação, a Brigadeiro, palmilha a comprida São João, habita praças, cruzamentos. 

O tempo todo zonzo, nas esquinas de gente trombando. Finda a manhã, demora a tarde, pede um dinheiro qualquer para qualquer um, compra duas, três doses de cachaça, bebe num trago, apaga.

No outro dia acorda sem noção, sem rumo, não para em lugar nenhum, não tem condição de ficar parado em lugar nenhum. É um vagante. Enraizou-se por um pouco num lugar só, num momento qualquer, naquele viaduto atrás do Masp. Viaduto São Carlos do Pinhal. É onde tem mais tempo de localização numa só calçada. Mas esteve, sensação de torpor, em lugares por aí que nem sabe onde foi. Sabe que no outro dia é o acordar sem norte.

– Você não tem nada, não tem vida, não tem ideia, não tem suporte, você não tem nada, então você anda. Quando o cara não tem nada, anda, tanto faz ir para frente como para trás, é a mesma coisa, é andar.

Quando se aproxima de alguma pessoa, não sente que é amiga. Raro alguém sem ar de tentar se proteger, evitar. Sempre vê as pessoas com medo.  É uma auto-exclusão.

– É nessa hora que o cara está excluído dele mesmo, que tem medo das outras pessoas.

Chegar a esse ponto, ter medo das pessoas. Tanto que hoje eu falo de alma cheia que esse projeto da Ocas, a grande alavanca desse projeto, está justamente aí, colocar as pessoas que são olhadas como um nada bem de frente às pessoas a quem a revista é oferecida. Esta é a melhor parte do projeto. 

O financeiro ajuda, o psicológico é sensacional, mas a estrutura que o projeto dá para que o cara, que é tido como um nada, chegue diante das pessoas e sinta a vida e a dignidade oferecendo um produto cultural, isto é a inserção na sociedade do cara. Reinserir o sujeito na vida.

Fim de semana, coração de Cláudio dispara. A cor volta ao seu rosto pálido. A expressão de espanto, sempre a marcar o morador de rua, agora é colorida. Cláudio vai ver a filha. Emoção maior, um abraço, um papo com sua Raiza, de 16 anos. A vida está de volta. A menina mora e cresce em estatura e sabedoria em Anápolis, com um tio. Quer fazer Física. Faz Inglês. Estar com ela. Olhar nos olhos de seu bebê. Isto é aquecer o coração.

Até agora não surgiu outra mulher que pudesse refazer sua vida, ter um relacionamento seguro. Não apareceu essa pessoa. Interesse por alguém tem acontecido, superficial. Ainda tem uma marca muito grande. Foram 15 anos de casamento. Tem o vazio da grande perda, a dor a acompanhá-lo até o túmulo.
– Ter relações com as pessoas e o fato de ser reconhecido em alguns lugares que eu vou, isto também me anima. As palavras que as pessoas me falam também ajudam muito. É aí que aquece o coração, o fato de você, na situação complicada de tristeza, ver alguém, mesmo sem compartilhar a sua dor, te impulsionar a sair dela, te animar. 

Dialogar para ressuscitar, lição de humanidade que a vida passa para Cláudio.

– Fiquem sabendo, qualquer pessoa só não é moradora de rua apenas por um triz.

Sobre essa dor, Cláudio, o que fazer?

– Acredito que essa é que tem de ser a expurgação. Tenho que expurgar essa dor aí. A luta principal de tudo isso é o fato de a gente acreditar que é capaz. Em qualquer situação a gente sempre é capaz. O difícil mesmo, o peso, é a dor da perda. É que a gente não tem o preparo para ficar sem. 

– A gente não está preparado para perder nada. Esta recuperação tem que ser feita na base do paulatino, do tranqüilo, com serenidade, confiança, acreditando sempre na própria capacidade, pois se a gente não fosse capaz acho que não estaria aqui. Então, se foi dada essa missão, eu sei que vou ter força para cumprir. Fere? Fere, dói, machuca, tortura.

Cláudio apaga a luz em seu favo. Encolhe-se na esteira. Noite fria, rajadas de chuva espancam a janela. De costas para o seu conforto, o pensamento sai a andar. Retoma a vida de fome e medo, na escuridão gelada das noites.

Num instante, o pensamento de Cláudio, papai de Yuri e Yago,  paixão de Maria, chega a Catanduva. No cemitério sem lua, longo tempo imóvel diante da sepultura.

Como no dia do enterro, outra vez o ímpeto de tirar mulher e filhos debaixo da terra. Nunca mais voltou para a sua casa, em Minas. Saudosa casa, em Ituiutaba, projetada por sua Maria, a arquiteta, fechada até hoje. 

O peito apertado, em imaginação, anda sem rumo pela cidade, alcança o centro velho, espia cada canto da rodoviária, também projetada por ela. De sua esteira aspira o ar adocicado das noites da cidade mineira, sempre abarrotadas de estrelas.

A mesma mão encolhida sobre a esteira em São Paulo gira a fechadura da casa em Ituiutaba. Mal respira.  De volta ao lar vazio. Na sala, nas poltronas, em tudo, quanta poeira! Passos vagarosos, alcança a cozinha. Louça por lavar. Faz que acende o fogão para ferver o leite. Na copa, a algazarra.Todos juntos, para o café. Maria, cabeça baixa, ri, equilibra a xícara. No quintal, as crianças brincam nas árvores. Jaboticaba, goiaba, limão.

Nas tardes quentes, carinhas espertas na janela a esperá-lo depois do serviço.Roupas pelo chão no banheiro. No quarto, os vestidos, com o perfume dela. Escova de cabelo, batom. A cama. Colcha desarrumada.

No baú rústico, o certificado de conclusão do seu curso de Química da Universidade Federal de Minas Gerais. Não volta lá para buscar o diploma. Não volta.

Madrugada. Cláudio sai do seu novo lar, no Glicério, para ir à Universidade de São Paulo. Vai para o segundo semestre do curso de Licenciatura em Química. Na sala de aula, no ônibus, duas horas para ir, duas para voltar, acompanha-o a velha dor, o cravo para sempre espetado no coração. Mergulha no fundo do mar, e a dor vai com nele. Dar aula, outras pessoas em sua vida para se preocupar, o melhor caminho, talvez.
De repente, o impulso de abandonar tudo e andar. Retomar a fuga que um dia o levou a dias e noites intermináveis, a olhar a polícia por um novo ângulo, a cruzar e descruzar São Paulo. Sempre um debandar sem fim, que o leva a comer mal, sentir-se fraco, doente, a não pensar com clareza, a chorar de dor nos ossos e na alma, a perder a confiança nas pessoas. 

O que é, se não uma fuga, esse andar sem fim, o vagar pela Áustria, para palestra? Pela Suécia, no campeonato mundial de futebol de moradores de rua? Portugal, pela rede internacional de jornais de rua?

Aplica o teu coração ao ensino, aconselha o sábio do Velho Testamento, a apontar caminhos. As faculdades de Psicologia, Comunicação, Direito, que começou e largou. Mesmo o conselheiro de Napoleão tem suas dúvidas  existenciais. Em sua linguagem de bruxo, o Eclesiastes quer saber: quem sabe o que é bom para o homem durante os poucos dias da sua vida de vaidade, os quais gasta como sombra?

– Pelo menos, a tribulação tem a compensação da força – geme Cláudio Bongiovani – a dor maior está em se prostrar diante de um obstáculo. A gente está sabendo que tem um meio de mostrar força para superar essas perdas. Superar perdas. Compensar perdas não existe.

– Mas quem falou que a gente perdeu? A gente tinha alguma coisa? Eu perdi meus filhos? O que eu tinha era a posse dos meus filhos.
Por Apollo Natali

– Foi muito tempo na rua para chegar a essa conclusão. Perder o quê? O sentimento de posse é perda. Então, se a gente tem posse de alguma coisa, sabe que vai perder.

– A gente não tem posse de nada. Não somos donos de nada. Somos donos do quê? Do que se faz de bem, do que se faz de bom. Aí, sim. É o que estou tentando.
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Uma curiosidade: reparem que Cláudio mantém sua dignidade, ao 
contrário do mendigo decadente emblemático que o conjunto
Jethro Tull eternizou no seu clássico Acqualung.  

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

VEJA A TRAGÉDIA DE 1964 EM "TERRA EM TRANSE", ENQUANTO ESPERA FAZEREM O FILME SOBRE A FARSA DE 2016.

Um dos melhores filmes políticos de todos os tempos e países, Terra em Transe (1967) é uma parábola perfeita sobre a quartelada de 1964, mas nem por isto válida somente para o Brasil.

Flagra uma realidade comum à maioria das nações do 3º mundo –ao qual, dizem, deixamos de pertencer em termos de pujança econômica, mas no qual permanecemos atolados até o pescoço quanto à distribuição de renda, à qualidade de vida e, mais do que tudo, em espírito, pois a alma brasileira continua pateticamente colonizada e submissa ao autoritarismo.

Glauber Rocha repetiu a fórmula de enfeixar nos seus personagens principais os atributos e posturas de classes e grupos de interesses. Assim, o poeta Paulo Martins (Jardel Filho) personifica a classe média intelectualizada, contraditória e vacilante, mas que acaba fazendo a opção revolucionária quando a crise política chega à fervura máxima.

Felipe Vieira (José Lewgoy) é o político populista a quem a esquerda se atrela, como se atrelou, p. ex., ao nacionalista Getúlio Vargas, ao trabalhista João Goulart e ao sindicalista Lula. Como na vida real, a opção oportunista de colocar-se a reboque de personagens que nada têm de marxistas ou anarquistas é punida com o fracasso: na hora da verdade, Vieira prefere não resistir ao golpe de estado, para evitar, alega, o derramamento do sangue dos inocentes. Ou seja, age exatamente como o poltrão Jango.

Porfírio Diaz (Paulo Autran), claramente inspirado em Carlos Lacerda, é o direitista obcecado em conquistar o poder a qualquer preço. Mas, Glauber teve o bom gosto de não fazer dele uma mera caricatura, embora bata pesado em seus desvarios megalomaníacos e em sua amoralidade entreguista ("As nossas carnes, as vidas, tudo, vocês venderam tudo, as nossas esperanças, o nosso coração, o nosso amor, tudo! Vocês venderam tudo!", atira-lhe na cara o poeta).

Don Julio Fuentes (Paulo Gracindo) é o grande capitalista nacional a quem os comunistas convencem de que será tragado pelo imperialismo se não confrontar a multinacional que domina Eldorado. Mas, volta atrás quando recebe uma oferta vantajosa da vilã, conformando-se com a condição de subalterno bem recompensado.

Finalmente, Sara (Glauce Rocha) é a militante devotada mas impotente para mudar o destino de seu povo. Vai continuar lutando após a terrível derrota... mas, nada indica que será vitoriosa da próxima vez. 

E, se os comunistas de 1964 refugaram na hora da decisão (o que Glauber sarcasticamente ressaltou no filme, ao mostrá-los exibindo armas o tempo todo, sem contudo, jamais dispará-las...), coube à minha geração resgatar a moral da esquerda, provando ao cidadão comum que também éramos capazes de sangrar pela nossa causa. 
Ao preço de tantas vidas perdidas e de tantos sofrimentos dantescos, reconquistamos o respeito das ruas. Mas ele seria novamente perdido adiante, quando os nossos que chegaram ao poder nominal desonraram as pregações de décadas, prostrando-se à burguesia na ilusão de que esta lhes permitiria desempenhar indefinidamente o papel de gerenciadores do capitalismo brasileiro.

Acabaram sendo usados e jogados fora, sem que sequer os tanques tivessem de sair às ruas para os expelir; bastou um piparote do Congresso Nacional. 

Ou seja, o que em 1964 nos pareceu o opróbrio extremo foi amplamente superado pelo episódio de 2016, em que o governo do PT simplesmente caiu de podre, sem sequer esboçar resistência significativa, embora desta vez se pudesse tentá-la sem risco de vida. 

E a nós, os eternamente traídos, só restou desabafar, como o Paulo Martins das telas:
"Não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos! Não é mais possível esta festa de bandeiras com guerra e Cristo na mesma posição! Assim não é possível, a impotência da fé, a ingenuidade da fé!
Somos infinita, eternamente filhos das trevas, da inquisição e da conversão! E somos infinita e eternamente filhos do medo, da sangria no corpo do nosso irmão!
E não assumimos a nossa violência, não assumimos as nossas idéias, como o ódio dos bárbaros adormecidos que somos. Não assumimos o nosso passado, tolo, raquítico passado, de preguiças e de preces. Uma paisagem, um som sobre almas indolentes. Essas indolentes raças da servidão a Deus e aos senhores. Uma passiva fraqueza típica dos indolentes.
Não é possível acreditar que tudo isso seja verdade! Até quando suportaremos? Até quando, além da fé e da esperança, suportaremos? Até quando, além da paciência, do amor, suportaremos? Até quando além da inconsciência do medo, além da nossa infância e da nossa adolescência suportaremos?"
Recheado de belíssimas citações poéticas, dramático e tempestuoso como a realidade que flagra, com algumas atuações portentosas (Lewgoy, copiando trejeitos de Vargas, Jânio Quadros e Adhemar de Barros, está simplesmente magnífico!), é um filme obrigatório para qualquer esquerdista que ainda seja capaz de refletir sobre a História e sobre o papel que nela lhe cabe, ao invés de apenas seguir obedientemente a linha justa.
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UMA VISÃO DIDÁTICA E INDIGNADA DO COLONIALISMO: "QUEIMADA".

Queimada (Burn!, 1969) é a obra máxima do cineasta italiano Gillo Pontecorvo e um dos mais perfeitos filmes políticos até hoje realizados, por ter a dosagem certa de reconstituição histórica, análise crítica e repúdio às injustiças sociais.

Também se trata, na minha opinião, de um dos ápices da carreira do grande Marlon Brando, no papel de William Walker, um agente do colonialismo que por duas vezes determina o destino de uma ilha dedicada à monocultura açucareira: 
  • primeiramente, ele fabrica um líder revolucionário para servir de espantalho, visando convencer os poderosos locais de que, se não agirem logo contra o governo colonial português, as massas tomarão a dianteira; 
  • depois, quando o antigo títere encarna bem demais seu papel e encabeça uma guerrilha contra a nascente e decepcionante democracia subjugada aos interesses econômicos britânicos, Walker comanda uma repressão impiedosa.
Face à constatação de que só conseguirá vencer incendiando as matas onde os rebeldes se refugiam, o que vai inviabilizar a produção de açúcar por décadas, Walker não hesita: a prioridade é evitar que a revolta se espalhe por outras ilhas semelhantes a Queimada. Portanto, quaisquer que sejam os prejuízos imediatos, tem de ser extirpada a ferro e fogo.

Por último, eis alguns trechos de uma entrevista que Pontecorvo (1919-2006) concedeu em 2003 ao crítico Luiz Zanin, de O Estado de S. Paulo. Mais precisamente, aqueles em que comenta seus dois principais filmes, Queimada e Batalha de Argel (La battaglia di Algeri, 1966, sobre o movimento guerrilheiro que foi o estopim da luta pela independência da Argélia).

Estado – Batalha de Argel parece tão natural quanto um documentário bem filmado. Mesmo os atores guardam uma espontaneidade difícil de encontrar entre profissionais.
Pontecorvo – Em Batalha de Argel trabalhei com o que chamo de  ditadura da verdade. Tudo que não parecia verdadeiro era imediatamente descartado. Os atores são gente do povo, argelinos interpretando os próprios papéis, com exceção do coronel francês, um ator profissional. Quando terminei o filme, sugeriram que eu deveria colocar um aviso dizendo que não havia utilizado uma única cena tirada de cinejornais. Foi o maior elogio que recebi. Filmamos muitas vezes imitando os cinejornais, com textura granulada. Sugeri ao meu fotógrafo o uso de um negativo que simulasse esse efeito. Queria cenas de cinejornal, granuladas, mas não medíocres como elas costumam ser.

Estado –  Queimada é em cores, com visual muito elaborado. Por que a diferença?
Pontecorvo – Com meu roteirista, Franco Solinas, quisemos fazer Queimada com estética muito próxima a um romance dos anos 1800, mas com conteúdo político. Um grande romance político. Gastamos seis meses estudando a situação colonial daquela época e cuidamos de todos os detalhes para que o filme tivesse verossimilhança histórica.
Estado – Mesmo que a ilha fosse fictícia…
Pontecorvo – Foi um recurso para falar do processo colonial de uma maneira mais ampla e não circunscrita a um ou outro país.

Estado – Como colocou um ator como Marlon Brando para contracenar com um amador como Evaristo Márquez, o líder revolucionário de Queimada?
Pontecorvo – Eu estava procurando atores em Cartagena, na Colômbia, e vi um homem que parecia ideal para o papel. Mas ele sumiu. Por obra do acaso fui reencontrá-lo em sua aldeia, com menos de 40 casas e onde não havia luz elétrica. Convidei-o para trabalhar com o maior ator do mundo, Marlon Brando. E Brando foi muito generoso com ele, ajudando-o nas cenas mais difíceis.

Estado – Lembra de alguma?
Pontecorvo – Eu precisava de um olhar irônico de Márquez, quando ele quer mostrar a Brando que percebeu toda a jogada em que foi metido. Mas Márquez nem sabia o que era esse tal de olhar irônico. A solução foi filmá-lo de cima para baixo e recomendar ao fotógrafo um certo ângulo, um brilho no olhar que sugerisse ironia. Deu certo. Brando morria de rir e disse que Stanislavski teria se revirado na tumba com essa técnica.

Estado – É verdade que o sr. brigou com Marlon Brando nas filmagens?
Pontecorvo – Um dia ele esqueceu os diálogos e fiquei enfurecido. Perguntei como isso podia acontecer a um ator como ele. Ele se sentou e disse: “Gillo, já fiz um monte de filmes, mas ainda fico nervoso a cada vez que uma câmera me focaliza”. Em seguida, recitou todo o diálogo, sem uma falha. Mas na frente da câmera, travava.

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