sexta-feira, 27 de novembro de 2015

MEMÓRIAS DE UM CRÍTICO IDEALISTA

Cinema Paradiso: uma ode ao fascínio da sétima arte.
Durante uns cinco anos, entre 1979 e 1984, atuei como crítico de cinema e de música em veículos de pouca expressão.

Mesmo ganhando pouco, é a fase da minha carreira profissional que me deixou as melhores recordações. Até como compensação, tinha liberdade para escrever o que queria, do jeito que queria. Repetindo o Jim Capaldi, "oh, how we danced!"...

Espelhava-me em pesos-pesados como Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel e Rubem Biáfora, com quem aprendera a apreciar a arte com olhar independente, em vez de ser mais um a fazer oba-oba para os artistas e obras de que todo mundo gostava.

Isto me colocava na contramão de uma crítica que começava a funcionar apenas como fornecedora de subsídios para o consumo, oferecendo aos leitores uma bula para eles decidirem se valia a pena ver determinado filme, comprar certo disco. Cheguei a escrever que se tratava, isto sim, de uma burla que se cometia com a arte.

A ficha me começou a cair quando assisti numa cabine a Alien, o Oitavo Passageiro, de Riddley Scott, ao lado dos maiores nomes da critica cinematográfica de São Paulo.

À saída, os medalhões travaram verdadeira competição para ver quem se lembrava de mais filmes antigos dos quais Scott chupara trechos. Demonstraram claramente ter considerado Alien uma colcha-de-retalhos e um lixo.
Peter O'Toole em O Substituto: o cineasta visto como um mago. 

Qual não foi minha surpresa ao constatar, quando as críticas deles foram publicadas, que todos haviam feito média com o filme, permanecendo pateticamente em cima do muro, nem sim, nem não, muito pelo contrário.

Perderam o pouco de respeito que ainda me inspiravam.

O "PROMÍSCUO" ZEFIRELLI - Outro episódio na mesma linha foi o ocorrido quando da coletiva que o diretor italiano Franco Zefirelli concedeu, ao lançar em São Paulo O Campeão. Antipatizei com o filme por ser um reforço dos valores familiares, uma guinada na direção do conservadorismo, depois de toda a efervescência da geração das flores.

Além disto, Zefirelli acabava de ser contratado a peso de ouro para montar uma ópera no Rio de Janeiro, embora, garantissem os expertos, houvesse muitos brasileiros que poderiam desempenhar melhor a função, recebendo bem menos.
Zefirelli: um entrevistado ingênuo como poucos.

Então, combinei com o colega do Diário Popular que, durante a entrevistas, jogaríamos o máximo de cascas de banana no caminho de Zefirelli.

Dito e feito. O italiano escorregou feio, chegando até a admitir que, ao contrário do moralismo piegas do seu filme, ele próprio era "promíscuo". E foi além no ridículo involuntário: "Mas, se todos fossem como eu, não existiria civilização".

Em nossas matérias, não perdemos a oportunidade de espinafrar o conspícuo herdeiro de Sodoma e Gomorra -- que, ademais, reconhecera não conceber os filmes seguindo suas convicções, mas sim com o calculismo de um homem de marketing.

Ou seja, ele procurava antecipar-se aos sentimentos e modismos que estariam em voga quando a película fosse lançada. É o que se depreende desta afirmação: "Não fiz Irmão Sol, Irmã Lua por ser franciscano, mas sim por ter percebido que a juventude estava entrando nessa onda e, logo, muita gente a seguiria..."

Mas, só nós dois registramos os maus momentos de Zefirelli. Os críticos realmente influentes omitiram suas bobagens e trataram de apenas levantar-lhe a bola, mantendo-se nas boas graças do sistema.
O Franco-Atirador me custou um emprego. Hoje agiria igual.

Eu, pelo contrário, nunca conciliei. Não hesitei em qualificar de irrelevante o Superman de 1978, com Marlon Brando. Aí, um diretor do poderoso Circuito Serrador fez questão de me entregar pessoalmente a permanente para eu ter livre acesso aos cinemas da empresa... com direito a um sermão sobre haver afastado os espectadores do seu grande lançamento daquele ano. Não dei a mínima.

Já as farpas contra o O Franco-Atirador, de Michael Cimino, serviram para azedar também meu relacionamento com os mandachuvas do principal veículo em que escrevia, o semanário Fim-de-Semana.

Eles eram todos altos funcionários do jornal O Estado de S. Paulo (dizia-se até que não passava de um veículo criado para descarregar impostos da empresa, apresentando perdas extremamente superfaturadas...) e, como tais, reacionários até a medula.

Ora, O Franco-Atirador, agraciado com vários Oscar, apresentava o conflito vietnamita na ótica calhorda de lamentar os traumas sofridos pelos soldados estadunidenses em contato com a barbárie dos asiáticos.
Jairo Ferreira descobriu: o grande anunciante tem sempre razão.

Ou seja, além de despejarem toneladas de napalm nos coitados, os estadunidenses ainda os satanizavam. Parecia a velha piada do brutamontes se queixando ao fracote de que havia machucado a mão ao esmurrar a cara dele.

Perdi aquela tribuna e não lamentei. "Canto eu vendo, não vendo é opinião", dizia uma velha música da era dos festivais.

INTIMIDAÇÃO DE CRÍTICOS - Não pude, entretanto, deixar de lamentar o fato de haver indiretamente causado a demissão do saudoso crítico e cineasta Jairo Ferreira da Folha de S. Paulo, noutro episódio.

Naquele tempo, a nata dos cineastas engajados agrupara-se na estatal Embrafilme, cuja assessoria de imprensa passou a fazer uma espécie de lobby para intimidar críticos: cada vez que um deles lançava seu novo filme, todos os outros escreviam elogios extremados e desancavam de forma igualmente extremada quem ousasse discordar da excelência da película lançada.

Isto tudo vinha em luxuosos press-kits, cuidadosamente produzidos para embasbacar, amedrontar e, finalmente, cooptar os críticos.
Uma estatal de triste memória

Observei o fenômeno uma, duas vezes. Na terceira, fiz uma veemente denúncia. Contei como funcionava o esquema e escrevi que, mesmo correndo o risco de me indispor com os Glauberes e Nelsons Pereiras, iria discordar: aquele filme não prestava.

O amigo Jairo leu, gostou e resolveu bater na mesmíssima tecla.

Só que a Embrafilme despejava rios de dinheiro na Folha, com seus anúncios enormes e caríssimos. Então, por coincidência, uma semana depois ele foi demitido, a pretexto de que uma crítica sua, escrita para ser publicada no sábado, saíra só na segunda-feira, quando o filme não estava mais em cartaz.

A editora da Ilustrada disse que não tinha sido avisada da urgência. Ele me garantiu que a alertara.

PARA ALÉM DA CRÍTICA DOMESTICADA - De resto, a contribuição maior que eu tentei dar foi propor uma crítica que não se limitasse aos mexericos de estúdios a que o Rubens Ewald Filho conferia tanta importância (quem namorou com quem durante as filmagens, etc.) ou à abordagem puramente técnica.

Queria que o cinema fosse tratado como algo maior. Que os temas levantados pelos filmes também fossem discutidos e aprofundados, não apenas a maneira como estavam sendo apresentados. Que se confrontasse, p. ex., o filme e a obra literária do qual ele derivava. Ou o filme e o acontecimento histórico que ele retratava.

Seria mais trabalhoso para os críticos mergulharem fundo em cada filme? Claro que seria. Mas, só assim daríamos aos espectadores subsídios para fluírem a arte em sua plenitude, como algo capaz de modificar e melhorar o ser humano.
Marcuse, o pai da contracultura.

Tais conceitos eram do filósofo Herbert Marcuse, meu autor de cabeceira naquele tempo: a sociedade pós-industrial tenta domesticar a arte, transformando-a em entretenimento inócuo. Mas, a verdadeira arte será sempre um contraponto à realidade, servindo de ponte entre o que é e o que poderia ser. Cabe aos combatentes da utopia impedir que ela morra.

É claro que meu trabalho acabou sendo ignorado pela grande imprensa; e que, ao propor um enfoque diametralmente oposto ao que convinha ao sistema, queimei minhas chances de estabelecer-me como crítico. Acabei não conseguindo sequer sobreviver nessa área, sendo obrigado a trocá-la pelo - argh! - jornalismo econômico.

Mas, como nunca tive compromisso com o sucesso, faria tudo de novo. Afinal, disse Isaac Deutscher, há vitórias que nos aviltam e derrotas que nos dignificam.

Sendo essas as únicas opções, preferirei sempre as segundas.

2 comentários:

Rui Martins disse...

Caro Celso,
tenho uma experiência parecida com a sua, sou veterano dos festivais de Locarno e Berlim e escrevo sem qualquer pressão, mesmo porque meus artigos são distribuídos gratuitamente para alguns jornais, me contentando com o fato de ser convidado dos festivais.
Essa maneira franca e independente de falar dos filmes, costumo dizer ser uma visão político-social, me causou surpresa recentemente, quando um produtor brasileiro insatisfeito com meu relato publicado no Brasil me xingou e ameaçou de ir se queixar à direção do Festival - "esse é seu último festival aqui!" me dizia dedo em riste. Não foi e continuo sendo convidado.
Mas é verdade, criticar negativamente um filme brasileiro num festival no exterior pode destoar, pois existe ao que parece uma certa preocupação da crítica em proteger o filme numa espécie de patriotada ou para não magoar os produtores. Vi isso na entrevista coletiva de um filme brasileiro brega. Me lembro, num outro episódio, do Padilha se irritando quando lhe disse diante do público que seu primeiro filme era fascista.

Voce cita e dá uma foto mas não falou do Cinema Paradiso, a respeito do qual tenho um testemunho ao ser apresentado no Festival de Locarno. David Streif, diretor de Locarno naquela época, tinha o hábito de programar para a Piazza Grande os filmes premiados em Cannes e Berlim. Foi assim que vi o chinês Sorgo Vermelho, e El Sud, de Solanas.
A Piazza Grande, grande como diz seu nome, fica no centro da cidade suíço-italiana de Locarno, onde durante o Festival colocam um enorme telão, diante do qual se enfileiram oito mil cadeiras de plástico.
No dia da exibição de Cinema Paradiso todas essas cadeiras estavam ocupadas. Era uma noite quente de verão de céu estrelado. Sempre que falo na rádio ou escrevo sobre o Festival de Locarno me refiro à forte impressão deixada pela projeção de Cinema Paradiso naquela noite e vou tentar transmitir minha emoção.
Quando Cinema Paradiso chegou ao fim, havia um anorme silêncio naquele público de mais de oito mil pessoas. Eu tinha minha garganta e dentes cerrados para reprimir um soluço, talvez os olhos estivessem umedecidos. As palmas só vieram mais tarde quando o público conseguiu controlar suas emoções e enxugar os olhos.
Foi uma emoção coletiva marcante, impressa na minha memória para sempre, aquela multidão silenciosa, emocionada, mal contendo soluços e lágrimas.
Grande abraço, Rui Martins.

celsolungaretti disse...

Meu caro Rui,

é uma honra te receber neste espaço.

CINEMA PARADISO é realmente um filme maravilhoso, mas não vi como encaixá-lo no texto. No entanto, coube como uma luva nas imagens, servindo para personificar o fascínio que o cinema desperta em nós.

Pessoas semelhantes geralmente passam por experiências semelhantes. Era previsível que alguém como você também houvesse sentido na pele como o sistema tenta evitar que façamos a arte viver por meio de nossos escritos. O interesse dos poderosos é que ela sirva apenas como entretenimento descartável e logo esquecido.

Já que vc falou nas emoções que CINEMA PARADISO despertou em você, direi que o filme que mais impactou em mim foi, por coincidência, um suíço: JONAS, QUE TERÁ 25 ANOS NO ANO 2000.
Além de uma profissão de fé nos ideais de 1968, acenou com a esperança de que fossem retomados adiante, para que a transformação quase concretizada naquelas primaveras chegasse, enfim, a bom termo.

Num momento de muito amargor (início da década de 1980), o filme do Alain Tanner aqueceu nossas almas.

Foi lançado sem muito alarde num cinema só (o cine Paulistano) e a crítica em geral torceu o nariz. Eu, que me identifiquei com ele da primeira à última cena, tinha sob minha responsabilidade uma página inteira de um semanário distribuído gratuitamente na zona de influência daquele cinema (o "Fim de Semana" circulava no quadrilátero av. Paulista/aAv. Brigadeiro Luiz Antonio/av. Brasil/av. Rebouças) e dediquei espaço enorme ao JONAS.

Virou cult entre os náufragos de 1968. Meu grande amigo Luís Alberto de Abreu, o teatrólogo, até batizou como Jonas seu primeiro filho.

Tenho a esperança de haver dado uma contribuiçãozinha para que ele se tornasse conhecido entre os que o poderiam apreciar.

Um forte abraço, Rui!

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