quinta-feira, 26 de abril de 2012

AÇÕES AFIRMATIVAS: "É PRECISO TRATAR OS DESIGUAIS DE FORMA DESIGUAL"

O Supremo Tribunal Federal interrompeu nesta 4ª feira (25) o julgamento da constitucionalidade das cotas raciais na Universidade de Brasília, que fixará o paradigma para todos os processos similares.

O único voto, por enquanto, é o do relator Ricardo Lewandowski, favorável. Segundo ele, "a política de reserva de vagas não é de nenhum modo estranha à Constituição" e deve ser mantida pelo "tempo necessário para que se alcance a isonomia e a justiça material".

Mais cedo, a vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, posicionara-se no mesmo sentido.

O julgamento prosseguirá hoje e a única dúvida é se Ali Kamel e seus discípulos terão de engolir o pó da derrota já nesta sessão ou as longas arengas dos ministros determinarão nova interrupção. Mas, a tendência de manter-se viva esta ação afirmativa é inequívoca. Não haverá surpresa.

A melhor abordagem que tenho visto do assunto é a do jornalista Leonardo Sakamoto. Seu artigo Demóstenes, o STF e a legalidade das cotas raciais é exemplar, merece ser lido e analisado por todos (acesse íntegra aqui).

Eis os trechos principais:

"Durante audiência no Supremo Tribunal Federal para discutir o sistema de cotas em universidades públicas em março de 2010, o senador Demóstenes Torres (então pertencente ao DEM-GO) usou da palavra para destilar todo o seu profundo conhecimento sobre a história do Brasil. 

Quem ouviu seu discurso saiu com a impressão de que aprendeu várias coisas novas. Que os africanos eram os principais responsáveis pelo tráfico transatlântico de escravos. Que escravas negras não foram violentadas pelos patrões brancos, afinal de contas 'isso se deu de forma muito mais consensual' o que 'levou o Brasil a ter hoje essa magnífica configuração social' de hoje. Que no dia seguinte à sua libertação, os escravos 'eram cidadãos como outro qualquer, com todos os direitos políticos e o mesmo grau de elegibilidade' – mesmo sem nenhuma política de inserção aplicada.

Com tudo isso, o nobre senador deu a entender que os negros foram os reais culpados pela escravidão no Brasil. E, a partir disso, compreende-se que são os culpados por sua situação econômica hoje e qualquer forma de discriminação contra eles.

A posição do senador é compreensível, se considerarmos que o discurso feito não foi um ataque à reserva de vagas para negros e afrodescendentes e sim uma defesa da elite política e econômica que controlou a escravidão no país e que, com algumas mudanças e adaptações, desembocou em setores do seu próprio partido.

Em meados do século 19, com o fim do tráfico transatlântico de escravos, a propriedade legal sob seres humanos estava com os dias contados. Em questão de anos, centenas de milhares de pessoas estariam livres para ocupar terras virgens – que o país tinha de sobra – e produzir para si próprios em um sistema possivelmente de campesinato. Quem trabalharia para as fazendas? Como garantir mão-de-obra após a abolição?

Vislumbrando que, mantida a estrutura fundiária do país, o final da escravidão poderia representar um colapso dos grandes produtores rurais, o governo brasileiro criou meios para garantir que poucos mantivessem acesso aos meios de produção. A Lei de Terras foi aprovada poucas semanas após a extinção do tráfico de escravos, em 1850, e criou mecanismos para a regularização fundiária. As terras devolutas passaram para as mãos do Estado, que passaria a vendê-las e não doá-las como era feito até então.

O custo da terra começou a existir, mas não era significativo para os então fazendeiros, que dispunham de recursos para a ampliação de seus domínios. Porém, era o suficiente para deixar ex-escravos e pobres de fora do processo legal.

Ou seja, mantinha a força de trabalho à disposição do serviço de quem tinha dinheiro e poder.

Para além dos efeitos da Lei Áurea, que esta prestes a completar 124 anos em maio, trabalhadores brasileiros ainda são subdivididos em classes. Ou castas. O homem branco ganha mais do que o homem negro pela mesma função, seja pelas diferenças de oportunidades que os dois tiveram acesso, seja por puro preconceito. Se compararmos então com as mulheres negras, a sensação de vergonha de ser brasileiro aflora de vez. Mudaram-se os rótulos, ficaram as garrafas.

O Brasil não foi capaz de garantir que os libertos fossem tratados com o respeito que seres humanos e cidadãos mereciam, no campo ou na cidade. Herança maldita disseminada na sociedade. E alimentada por discursos como o de Demóstenes Torres. Ou pela falta de políticas afirmativas.

Antes de tratar todos com igualdade, como pedem desesperadoramente alguns, é preciso tratar os desiguais de forma desigual através de ações afirmativas. Só assim, poderemos sonhar – um dia – em que negros e brancos, homens e mulheres, não se sintam como se tivessem vindo com a roupa errada para a festa".

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