quarta-feira, 14 de setembro de 2011

BAÚ DO CELSÃO: "TESTEMUNHA OCULAR DA HISTÓRIA"

Fui assistir à palestra de um professor universitário num local improvável: a antiga Casa de Detenção onde, em outubro de 1992, 111 presidiários foram assassinados pela Tropa de Choque da Polícia Militar, cumprindo uma desastrosa ordem de invasão do governador Luiz Antonio Fleury Filho.

O monumental complexo penitenciário foi desativado em 2002 e hoje abriga ensino profissionalizante, atividades esportivas, recreativas e de lazer.

Transformaram-no em local aprazível, mas não o suficiente para eu ignorar os fantasmas do  massacre do Carandiru  esgueirando-se nas sombras, a clamarem pela justiça que lhes foi negada.

Os jovens não notam nada – que sorte a deles!

A Escola Técnica Parque da Juventude promoveu um evento multimídia (Cale-se: censura na música) para marcar os 40 anos do ano em que os melhores resistiram bravamente aos piores, antes que a razão sucumbisse à força e as trevas engolissem a luz que ainda restava no Brasil.

Como dera uma longa entrevista para a moçada, fui lá ver o que resultou da síntese de tantos elementos díspares, bem no espírito de 1968.

Cheguei, vi, gostei. Muita vontade de acertar, de fazer tudo bem feito.

E soluções criativas, como o cemitério das músicas censuradas, uma lápide para cada canção que foi sonegada dos contemporâneos e (várias delas) aclamada pelos pósteros.

Marcelo Ridenti, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, fez uma agradável digressão sobre a grande música dos anos de chumbo, extraindo exemplos das dezenas de CD’s que trouxe a tiracolo.

Constatei de novo o que sempre percebo nas palestras e nos textos de quem reconstitui, a partir de pesquisas, aquilo que eu vivi: por melhor que seja o resgate do passado, sempre escapa algum detalhe, até ínfimo, mas significativo para quem foi testemunha ocular da História (como Ridenti afavelmente me designou, aludindo ao bordão do antigo Repórter Esso).

P. ex., “Aquele Abraço”, vista retrospectivamente, parece ser uma evocação nostálgica de cenários e pessoas queridas do Brasil, por parte do Gilberto Gil exilado. Algo como a versão tropicalista do “minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá”.

Quem viveu o momento, entretanto, sabe que Gil estava é dando toques furiosos nas entrelinhas, com a engenhosidade que lhe permitia driblar a censura burra da qual era um dos principais alvos.

“Alô, alô, Realengo” foi uma alusão ao quartel militar que existia naquele subúrbio carioca. Quando ele lá esteve preso, havia um carcereiro que, ao abrir a cela, costumava lhe dizer “e aí, Gil, aquele abraço!”. Ou seja, a gênese da música nem de longe é a que alguém possa imaginar, a posteriori.

E ele tinha justificado ressentimento por haver sido abandonado, entregue às feras, por tantos que antes o adulavam. Na hora do perigo, houve muito mais salve-se quem puder! do que solidariedade.

Então, o trecho “Pra você que meu esqueceu/ Ruuummm!/ Aquele Abraço!” não é uma admoestação aos fãs que o trocaram por outros artistas, mas sim uma banana para os amigos e colegas omissos, que tinham a obrigação moral de fazer muito mais por ele do que fizeram.

E o LP branco (1969) de Caetano Veloso, hoje lembrado principalmente pelo grito abafado de “Marighella!” na faixa “Alfômega”, tem uma música que me sensibilizava muito mais: “Irene”.

Preso na PE da Vila Militar, Caetano ansiava por sair daquele inferno (“Eu quero ir, minha gente/ Eu não sou daqui”) ao qual fora levado sem motivo (“Eu não tenho nada”) e poder de novo curtir a irmã querida (“Quero ver Irene dar sua risada”).

Minha sensação claustrofóbica era idêntica, nos meses intermináveis que passei no mesmo lugar e até na mesma cela... 
(artigo de dezembro/2008, que eu já tinha até esquecido. O "Poderá gostar também de" me levou de volta a ele...).

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