domingo, 24 de abril de 2011

MEMÓRIA E PROFISSÃO DE FÉ

Hoje é domingo de Páscoa. Dois motivos para sair um pouco do ramerrão deste blogue e apresentar uma divagação, digamos, mais íntima. Sei lá por quê, foi o que me apeteceu fazer.

É que me lembrei da velha constatação de Freud e de muitos artistas, de que aquilo que nos acontece nos verdes anos define nossos padrões de comportamento para sempre.

Eu fui criança enfermiça até os sete anos, costantemente gripado e febril, muito magro. Tuberculose era um fantasma que assombrava o sono dos meus pais, mais ou menos exorcizado com as antigas vacinas BCG, que não dissipavam todos os seus temores. 

E um tio farmacêutico, numa época em que os controles de seu ofício quase inexistiam, aplicava-me penicilina sempre que necessário, por conta própria e sem me causar nenhum dano. 

Aliás, para a clientela pobre do bairro, ele substituía com vantagem os médicos que os coitadezas não tinham como bancar (os serviços públicos eram dantescos e a maioria fugia deles, salvo nos casos realmente graves).

Só entrei na escola com sete anos, em 1958. Comecei a cursar o 1º ano do Primário com tais limitações. Nas férias, fui operado das amigdalas... e meus problemas mudaram quase instantaneamente.

Passei a ser saudável... demais. Com enorme apetite, que meus pais correram a satisfazer, aliviados por se verem livres dos receios que a minha magreza antes lhes causava.

Fiquei obeso até lá pelos 12, 13 anos, quando meu crescimento me colocou no peso normal.

Mas, o fato é que, primeiramente por ter saúde frágil, depois por ter ficado gordo, não me enturmei bem com os colegas do Primário. E adquiri o perfil de lobo solitário, que acabou me ficando para sempre.

Excluído da panelinha dos mais destacados e brilhantes, reagi, no Primário, ficando na moita e não me esforçando até o exame final, quando surpreendia a todos obtendo o melhor resultado da classe.

No ginásio começaram os trabalhos em grupo e eu desenvolvi outra estratégia: formei minha própria panelinha, agrupando os patinhos feios e liderando-os de tal forma que o conjunto acabasse competitivo em relação à panelinha dos brilhantes e até a superasse.

Percebendo que meus protegidos jamais exporiam os trabalhos tão bem quanto os desembaraçados, mesmo que eu lhes preparasse ótimos scripts, introduzi a apresentação em forma de jogral. Imprimia o texto, distribuía as cópias com as falas de cada um sublinhadas, ensaiávamos, destácavamos os trechos mais importantes recitando-os em coro, etc. Funcionava.

De resto, tinha um ou outro amigo isolado, para conversar, ir ao futebol e ao cinema, jogar sinuca, remar no Lago do Ibirapuera, sair atrás de garotas (quase sempre quebrando a cara) e das prostitutas do centro da cidade (barra que não era sensato encarar sozinho).

Um episódio marcante: certo sábado, eu e um colega da escola, não propriamente amigo, fomos ao  centrão  e ele gostou de uma prostituta. Tinha dinheiro para pagar e eu, não. Mesquinhamente, não se propôs a me emprestar o necessário, então abandonei-o lá. Na 2ª feira, estava com ferimentos feios no braço. Houve uma desavença e ela o feriu com gilete...

Só no movimento estudantil me vi como parte de um conjunto de iguais -- e foi um tempo inesquecível. De uma ou outra forma, éramos todos diferentes dos jovens da nossa idade; e, irmanados pelo ideal comum, não competíamos entre nós, respeitando e prestigiando o talento de cada um. O meu era a redação. O grupo assumiu que eu deveria escrever os textos de panfletos, manifestos, etc., e ponto final.

Com a radicalização da luta, acabei separado dos meus caros amigos. E, mais uma vez, enfrentando rejeições em função da precocidade que, de um lado, me tornou, provavelmente, o mais jovem comandante da guerrilha, aos 18 anos, como integrante do Comando Estadual da VPR em São Paulo (abaixo apenas do Comando Nacional).

De outro, valendo-me invejas e rejeições que afloraram quando o José Raimundo da Costa e eu iniciamos o processo que acabaria levando ao racha dos 7 e à recriação da VPR (inicialmente, fomos combatidos com distorções e calúnias, acabando isolados e só não perdendo a parada porque, em função dos rumos do Congresso de Teresópolis, o Lamarca encamparia nossa visão); e, mais ainda, quando foi tão facilmente aceita uma grave acusação contra mim que, alguns pelo menos, sabiam ser falsa (e eu, preso, não tinha como me defender).

Passei o resto da vida fora das panelinhas e tendo uma relação conflitante com elas. É claro que tudo se tornou bem mais difícil, pessoalmente, para mim.

Por outro lado, escapei da tendência bem brasileira de se relevar os erros dos amigos e transigir em relação a princípios. Pouco importando se sozinho ou com muitos ao meu lado, defendo sempre o que julgo ser certo. E desenvolvi uma couraça que me tornou imune à ação de rolos compressores.

Para mim, a política não se reduz a um jogo de futebol, em que tudo é visto pelo prisma do time pelo qual se torce e o gol impedido no finzinho do jogo merece aplausos.

Então, por piores que sejam as práticas em que o inimigo incorra, defenderei até o fim os valores originais do marxismo, segundo os quais devemos contribuir para o advento de um estágio superior de civilização e sermos, cada um de nós, o exemplo de pelo menos algumas das virtudes dos homens novos que, numa sociedade nova, todos se tornarão.

No fluxo revolucionário dos anos 60, era mais fácil defender tais posições (depois taxadas de  utópicas  pelos nimigos de 1968).

Hoje, no refluxo, parece até lógico o retorno ao velho maniqueísmo stalinista e à  realpolitik  do tempo da guerra fria, aceitando-se como  males menores  déspotas maiores do tipo de Gaddafi, Ahmadinejad e Saddam Hussein, apenas porque seus interesses não se alinham com os de EUA, Israel e países europeus. Esquece-se até que de revolucionários eles não tinham ou têm absolutamente nada...

Só que tais  males menores, por sua truculência, despotismo e barbárie, produzem, na verdade, o pior de todos os males: a descaracterização da esquerda. Deixamos de corporificar, aos olhos dos injustiçados e dos oprimidos, a alternativa à desumanidade do capitalismo putrefato e à liquidação dos valores mais nobres sob o primado dos cálculos mesquinhos.

Quando encaminhamo-nos para cenários propícios à retomada das lutas pela revolução mundial, é hora de voltarmos a pensar grande. E com ética. E com humanidade.

E com, no mínimo, senso comum: quem quer mudar o mundo, não pode estar associado ao que de pior o mundo já produziu.

Se minha sofrida trajetória teve algum sentido, foi o de me preparar para o desempenho do atual papel, de trincheira contra a descaracterização da esquerda, mantendo viva a lembrança das premissas libertárias do marxismo, que os  pragmáticos  de hoje tudo fazem para relegar ao olvido.

Um comentário:

Thiago Guerim disse...

Bom dia Lungaretti,

Só enviando esse post pra recomendar a leitura de um brasileiro cuja obra é muito importante para entender o mundo atual: Milton Santos.

Sou estudante de geografia na UFES.

Abraço!

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