domingo, 3 de abril de 2011

JURAMENTO DE HIPÓCRATES OU DE HIPÓCRITAS?

Deveriam ser todos como Hipócrates...
"Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higéia e Panacéia, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue...

...Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda...

...Conservarei imaculada minha vida e minha arte..."

Declaração solene que os médicos tradicionalmente fazem ao se formarem, o Juramento de Hipócrates era miseravelmente atraiçoado por médicos que serviam à ditadura de 1964/85.

O caso do atitista Olavo Hanssen -- assassinado pelos torturadores em 1970 e apresentado no laudo médico como suicida -- que relatei brevemente no artigo Olavo, Eremias, Juarez e os outros mártires nos legaram uma missão, motivou o companheiro Luiz Aparecido, militante histórico do PCdoB e preso político que foi muito torturado pelos militares, a escrever-me o seguinte:
...mas havia muitos como Shibata...
 "...tambem fui levado para o Hospital Militar do Cambuci depois de 17 dias de torturas intermitentes para, segundo meus algozes, me operar dos rins, pois estava ha dias urinando puro sangue e urrando de dor.
Fiquei lá uns 10 dias, quando abriram minha barriga, cujo corte esta comigo até hoje e me disseram que tinham retirado um dos meus rins que estava esmagado de tanta porrada. Voltei para a Oban/DOI-Codi costurado e ainda todo arrebentado.
Não é que só agora depois de minha doença na medula que me deixou quase paralitico descobri a verdade. No Hospital Sarah em Brasilia, fizeram uma checagem geral em mim e descobriram que eu tinha os dois rins. Só que um ficou necrosado dentro de mim desde 1973.

Resultado que conclui depois deste exame do Sarah. Meus algozes, me abriram, não encontraram nada nos rins a não ser lesões e costuraram de novo e ficaram c om uma desculpa na ponta da lingua. Se eu morresse nas torturas, que continuaram, poderiam dizer que foi por complicações na 'operação' desnecessaria que fizeram".
A cumplicidade dos médicos com os torturadores é conhecida por todos que passamos pelos porões. 
...cúmplices das práticas hediondas.

Quando estive próximo de enfartar aos 19 anos de idade, no Doi-Codi/RJ, houve um que me fez rápido exame, entupiu-me de calmantes e deve ter aconselhado os militares a não abrirem a  mala de ferramentas  comigo durante alguns dias (pois fui despachado logo em seguida para São Paulo e mandaram junto a recomendação de não me torturarem tão cedo).

Outros companheiros denunciaram a cumplicidade de médicos inclusive na aferição da intensidade das torturas que eles poderiam suportar.

E houve a produção em série de atestados de óbito fraudulentos, como o de Hanssen. O mais célebre foi o do chefe do Instituto Médico Legal de SP, Harry Shibata, dando Vladimir Herzog como suicida.

Shibata foi também acusado de instruir os Torquemadas sobre como poderiam torturar suas vítimas sem deixar marcas.

E ajudou, ainda, a acobertar a  queima de arquivo  no caso do delegado Sérgio Fleury, testemunha perigosa (sabia demais) e descontrolada (seria viciado em cocaína e estaria chantageando empresários que haviam sido cúmplices da repressão e até atuado como torturadores voluntários): ele recebeu e cumpriu a ordem de Celso Telles, delegado-geral da Polícia Civil, de produzir um atestado de óbito evasivo sem nem mesmo tocar no cadáver de Fleury,

Luiz Aparecido: rim necrosado desde 1973
Para encerrar, eis um caso emblemático extraído da ótima reportagem Assistência médica à tortura (que relaciona vários outros na mesma linha e cuja íntegra está disponível no site Direitos Humanos na Internet):
"O estudante Ottoni Guimarães Fernandes Júnior, de 24 anos, preso no Rio em 1970, também declarou na 1ª Auditoria da Aeronáutica:

...que, dentre os policiais, figura um médico, cuja função era de reanimar os torturados para que o processo de tortura não sofresse solução de continuidade; que durante os dois dias e meio o interrogado permaneceu no pau-de-arara desmaiando várias vezes e, nessas ocasiões, lhe eram aplica­das injeções na veia pelo médico a que já se referiu; que o médico aplicou no interrogado uma injeção que produzia uma contração violenta no intestino, após o que era usado o processo de torniquete..."

3 comentários:

ismar disse...

Celso,

Este é um dos melhores artigos que já li sobre este macabro assunto. Além de ser um dos crimes que eu mais pesquiso hoje em dia, dentre vários outros praticados pelos serviçais da Ditadura militar.

Para mim, o caso mais emblemático é o do Médico Amílcar Lobo, que assumiu a culpa por laudos falsos, confirmou que trabalhou para o DO-CODI RJ, depois de alguns anos foi reconhecido e desmascarado pela militante Inês Etienne Romeu em 1981, e escreveu um livro (A hora do Lobo, a hora do cordeiro) para tentar justificar os serviços prestados aos carrascos do DOI-CODI- RIO DE JANEIRO.

Abração e parabéns por este brilhante artigo.

William Wollinger Brenuvida disse...

Caro Celso,
1. Enalteço a postura firme e corajosa deste blog. Você e demais companheiros que resistiram até seus limites a Ditadura, são testemunhas dos horrores vividos naquela época;
2. Tenho um livro escrito pela Matilde Leone, chamado "Sombras da repressão: o outono de Maurina Borges". É um romance histórico sobre fatos ocorridos no interior de São Paulo. Narra as torturas e a postura dos médicos da repressão;
3. Citei, em meu trabalho monográfico de Especialização em Processo Penal, questões relacionadas as torturas e os laudos médicos que omitiam os verdadeiros fatos;
4. Tanto o teu depoimento, quanto o do companheiro do PCdoB, mostram o SADISMO, o DESCUMPRIMENTO do Juramento de Hipócrates; e o total DESCASO COM A VIDA...
5. Saudações Fraternas,
William

Anônimo disse...

As medidas tomadas pelas forças legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear ações criminosas sentiu-se a necessidade da criação de uma estrutura, com vistas a apoiar, em operação e inteligência, as atividades necessárias para desestruturar os movimentos radicais e ilegais. Mesmo sem qualquer mudança de posicionamento e de convicções em relação ao que aconteceu.
Naquele período histórico, considera-se ação pequena, reavivar revanchismos ou estimular discussões estéreis sobre conjunturas passadas, que a nada conduzem.
Saudades do DOI CODI perído onde trabalhei e era estudante de Medicina.

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