terça-feira, 16 de novembro de 2010

RECOMENDO: "O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA"

Dois meses antes dos fanáticos do  patrulhamento cricri  cometerem sua maior lambança em todos os tempos -- a malograda tentativa de afixarem uma etiqueta de "racista" em Monteiro Lobato -- o professor Luiz Antonio Simas  (*) lançou este antológico artigo, que subscrevo na íntegra e recomendo com entusiasmo.


Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto.  Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais  O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais. Na nova letra "o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o  cravo ficou feliz / e a rosa ficou encantada". 

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha.  Será que esses doidos sabem que  O cravo brigou com a rosa  faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?

É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/  Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é  Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda e dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém  mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual,  Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado. Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato,  era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magoo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão  coisa de viado  não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular  pintor de roda-pé  ou leão de chácara de baile infantil - de deficiente vertical . O crioulo - vulgo  picolé de asfalto  ou  bola sete  (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente. O branquelo - o famoso  branco azedo  ou  Omo total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia - aquela que  nasceu pelo avesso, a  soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade. O gordo - outrora conhecido como  rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassinabujão - é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de  morto de fomepau de virar tripa  Olívia Palito. O careca não é mais o  aeroporto de mosquitotobogã de piolho  e  pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais... Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra  putaqueopariu  e o centroavante pereba tomar no olho do cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso  pé na cova,  aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular  tá mais pra lá do que pra cá,  já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor idade".

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio Cidade dos  pés juntos.
* Luiz Antonio Simas é mestre em História Social pela UFRJ e professor de História do ensino médio. Desenvolve pesquisas sobre a cultura popular carioca.

2 comentários:

Anônimo disse...

so uma pequena colaboração nao solicitada:
O cravo brigou com com a rosa em sua letra originaldescreve um brutal defloramento, quase um estupro.

celsolungaretti disse...

É? E alguma criança fazia essa leitura ou todas se encantavam com a cantiga, sem ficarem procurando pêlo em ovo?

Related Posts with Thumbnails