domingo, 31 de outubro de 2010

BAÚ DO CELSÃO: HENRIQUE PINTO, IT'S A LONG WAY

Saiu assim no jornal:
HENRIQUE PINTO (1941 - 2010)
Foi referência no violão erudito
Até da África vinha gente estudar com Henrique Pinto, figura central do violão erudito no Brasil. A maioria dos músicos do gênero no país passou pelas mãos dele.
Nascido em São Paulo, ele começou a aprender a tocar nas idas que fazia à fazenda de um tio, no interior paulista, com um funcionário de lá.
Quando seu pai, vendedor da Souza Cruz, viu que o rapaz tinha talento, logo chamou um professor particular.
Henrique descobriu que seu dom mesmo era ensinar.
Como conta a companheira, Amália, também violonista e diretora do Conservatório Villa-Lobos, ele era capaz de ver rapidamente a deficiência do aluno e logo saná-la. Mais do que professor, era o conselheiro que direcionava a carreira dos pupilos.
Divertido, costumava brincar: "Aluno com aliancinha no dedo, eu fico desesperado, porque é sinal que ele vai parar de estudar violão".
Henrique deu aulas em faculdades, colaborou com revistas e organizou projetos, como o Violão no Masp.
Gravou CDs, DVDs e escreveu livros. "Ciranda das Seis Cordas", para crianças, contém desenhos de uma japonesinha que estudava com sua filha. "Iniciação ao Violão" é adotado por quase todos os iniciantes no erudito.
Em abril, sofreu um infarto e, durante a cirurgia, teve um AVC (acidente vascular cerebral).
Após um mês em coma, acordou em 12 de junho, Dia dos Namorados, mas teve diagnosticado um tumor.
Quando estava hospitalizado, disse ter descoberto o real valor de sua carreira: ser amado pelos alunos. Morreu na terça, aos 69, de septicemia. Deixa duas filhas e neta.
Conheci pouco esse Henrique Pinto de que fala o obituário bem escrito por Estêvão Bertoni e publicado na Folha de S. Paulo dominical.

O Henrique Pinto de que me lembro era bancário e cursou comigo a 1ª série ginasial no então Ginásio Estadual MMDC -- que, por falta de instalações próprias, funcionava em 1962 no mesmo prédio do Grupo Escolar Pandiá Calogeras, no bairro paulistano da Mooca.

Primário de dia, ginásio à noite. Pulando diretamente de um para outro, vi-me de repente em contato com colegas bem mais velhos, que já trabalhavam e tinham uma perspectiva diferente da vida.

Havia um zelador fortão, imponente, que, sei lá por quê, ia sempre de terno.

Também um coitadeza interiorano que trabalhava e, por camaradagem da repartição, abrigava-se na empresa de águas e esgotos, que no bairro era conhecida como a  Caixa d'Água. Já deveria estar na casa de 30 anos, magro e subnutrido, não aguentava a jornada estafante e, amiúde, dormia durante as aulas. Causava-me muita pena, com sua ingênua esperança de que o curso ginasial ira lhe abrir melhores perspectivas profissionais.

E o Henrique Pinto, que sentava na carteira ao meu lado, sempre elegante com suas calças pretas e paletós claros. Eu não estava acostumado a ver as pessoas de terno com uma peça de cada cor, ele provavelmente foi o primeiro, daí este detalhe ter permanecido nas minhas lembranças.


Gente finíssima, não se importava em satisfazer minha enorme curiosidade sobre a realidade com que me depararia adiante -- ele tinha dez anos mais do que eu.

Evidentemente, só me lembro da impressão que me causava, não exatamente do que falávamos. Mas me recordo de uma pergunta tola que lhe fiz, quando da crise dos mísseis cubanos.

Quis saber se ele temia ser convocado para a guerra.

Deu uma discreta risada e respondeu que a coisa não chegaria a tanto.

No ano seguinte, não ficamos na mesma classe. E em 1964 o MMDC passou a ter sua casa própria, de forma que os mais jovens fomos direcionados para o período diurno.

Perdi o Henrique Pinto de vista até que, no segundo semestre de 1971, fui cursar o Equipe Vestibulares, preparando-me para o vestibular de Jornalismo.

Fazia pouco tempo que os militares haviam me libertado e eu estava ainda traumatizado e desnorteado.

O Henrique foi lá resolver qualquer assunto e demos de cara num corredor.

Já não era mais bancário. O violãozinho que tocava de vez em quando  (era assim que se referia, fazendo-me pensar mais num hobby...) tinha virado sua atividade única e aclamada. A carreira artística deslanchara.

Ciente da minha turbulenta passagem pela luta armada, nos poucos minutos de nossa conversa ele percebeu que eu estava em parafuso. E, amavelmente, convidou-me para assistir a um ensaio de seu trio erudito. 

Viu que eu estava precisando conhecer gente e ter novas experiências, para livrar-me do peso das lembranças que ainda me atormentavam.

Fui, achei pitoresco, conheci uma faceta bem diferente do antigo colega.

Mas, ficou nisto. Adiante, encontraria o ambiente ideal para extravasar as emoções represadas e começar a me reconstruir, juntando os cacos: uma comunidade alternativa.

Corte para 2008, mais ou menos, quando a esposa do Henrique Pinto me localizou na internet, por acaso.

Disse que o Henrique conservara alguns escritos meus do passado distante e gostaria de devolver.

Troquei e-mails com ela e com o próprio Henrique, mas o reencontro nunca se consumou. Sempre havia algo mais urgente, para ele ou para mim.

Só nos enviávamos e-mails. Os meus artigos, os releases dele, anunciando recitais.

Até que outro músico teve a bondade de me comunicar seu falecimento. Fiquei triste, pesaroso e com remorsos.

Pela segunda vez, a vida me pregava uma peça dessas. Deveria ter ficado esperto a partir da primeira: um velho companheiro de militância estudantil estava canceroso e me falou sobre isso despreocupadamente, por telefone, como se fosse coisa pouca.

Também não nos víamos há bom tempo. E não me dei conta de que ele realmente estava nas últimas. Morreu antes que o visitasse.

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