terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

HÁ 60 ANOS A ESQUERDA COMEÇAVA A ACORDAR DO PESADELO STALINISTA

RELATÓRIO KRUSCHEV

Por Mário Sérgio Conti
Daqui a pouco será o aniversário de 60 anos da leitura, na tribuna do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, do Relatório Kruschev. Foi um auê. Um governante russo incriminava pela primeira vez Josef Stálin, enterrado três anos antes no Kremlin com a auréola de santo.

O relatório fez com que algo do Stálin real emergisse. Ele mandara torturar e matar centenas de milhares de inocentes. Deportara povos e perseguira etnias. Provocara crises alimentares e instituíra o trabalho forçado. Fizera um pacto com Hitler que levou 22 milhões de soviéticos à morte, na Segunda Guerra Mundial.

Nikita Kruschev, secretário-geral do PC, discursou em 23 de fevereiro de 1956, ao fim de um congresso modorrento. Os 1.450 delegados do partido ficaram em choque, mas não receberam o documento impresso.

Mesmo censurado pela imprensa, nas semanas seguintes não se falava de outra coisa em Moscou. E, cada vez mais, na União Soviética: o relatório foi lido aos 25 milhões de filiados do PC e da Juventude Comunista. Houve manifestações contra e a seu favor.

O partido stalinista da Polônia traduziu o discurso. O texto polonês foi retraduzido e publicado, em junho, pelo The New York Times e pelo Le Monde. O relatório consternou militantes mundo afora: o socialismo desandara em terror policial.
Kruschev expôs cruamente os crimes do tirano...

A reação ambígua dos chefetes stalinistas, coniventes e beneficiários dos crimes do tirano, fez com que relatório tivesse uma existência fantasmagórica. Só veio a ser publicado na União Soviética quando ela agonizava, em 1989.

Teve destino semelhante no Ocidente. Apenas agora saiu a tradução francesa do texto russo, feita pelo historiador Jean-Jacques Marie. Como ele anexou cem páginas de introdução e notas, o livro está cheio de novidades.

Fica-se sabendo, por exemplo, que o relatório não foi escrito por Kruschev. Quem o redigiu, por ordem expressa da direção do PC, foi um stalinista de quatro costados, Piotr Pospelov, que fizera a biografia oficial do ditador e editara o Pravda.

Kruschev o leu com um objetivo tríplice. Queria fazer frente à explosão social eminente, precaver-se para o surgimento de uma nova esquerda e manietar a ala dura do stalinismo, que engendrava a sua derrubada.

A explosão de fato veio, mas nos satélites europeus. Com hiatos, ela se deu em Berlim, Budapeste, Praga e Varsóvia. A força de esquerda não se materializou. A ala dura abateu Kruschev oito anos depois.
...mas idolatrias são difíceis de eliminar.

O relatório tem atualidade na Rússia e fora dela. Dentro do país porque Putin ensaia a reabilitação de Stálin, no quadro fantasioso da Grande Rússia, na qual ele seria o autocrata de turno.

A sua pertinência no exterior é outra. Aqui, a esquerda tenta se reerguer em meio à crise de seus partidos tradicionais, atolados em incoerências e apedrejados pela direita. É instrutivo, pois, ler as primeiras censuras ao relatório.

A crítica de Mao Tse-tung é manipulativa: valia tudo para vergastar os soviéticos. A de Eric Hobsbawn é stalinista: Kruschev manchou o socialismo. A de Sartre, idealista: o povo deveria ter acesso ao relatório só depois de educado.

Com isso, o discurso de Kruschev não provocou mudanças nem na URSS nem nos partidos comunistas. A crítica de esquerda continua necessária. Do relatório e de si mesma. Inclusive no Brasil do PT.

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