segunda-feira, 18 de março de 2024

COM A POMPA E CIRCUNSTÂNCIA DE QUEM DESCOBRIU A PÓLVORA, SAFATLE REPETE O QUE JÁ SABÍAMOS E NÃO APONTA FUTURO

O filósofo Vladimir Safatle é bem intencionado e consegue dissecar corretamente o passado, nem tanto o presente  e às vezes tropeça nas elucubrações sobre o futuro.

Eu, que como jornalista sempre me esforcei para tornar acessível ao leitor comum o blablablá empolado e pretensioso que é marca registrada da corporação acadêmica, não canso de me surpreender quando tantos se prostram a obviedades embaladas em papel para presente chique, como as que constam do artigo (aqui reproduzido) que o Safatle escreveu para a Ilustríssima da Folha de S. Paulo, em resposta  aos que criticaram seu último livro.

Para não perdermos tempo, antecipo que concordo com as análises abaixo, que eu mesmo já fazia há bom tempo, só que expondo-as em linguagem mais simples:
— a crise do subprime, em 2008, revelou que o capitalismo se aproxima inexoravelmente do fim e perdeu a capacidade de tornar a existência minimamente aceitável para contingentes humanos cada vez maiores (comparação minha: a época atual lembra muito a iminência da queda do Império Romano, pois há um número cada vez maior de bárbaros cercando-nos e as fronteiras dia a dia se tornam mais inseguras);
— face a isto, a ilusão reformista de que o capitalismo ainda se domesticaria ruiu por terra, o centro político sucumbe aos extremismos e as massas desesperadas despejam sua fúria sobre quem representa o stablishment;
— então, a esquerda institucional, que ora se apoia no centro para resistir às investidas da extrema-direita realmente morreu e só falta enterrar, pois, para obter vitórias momentâneas, sacrifica o desfecho da guerra, associando-se sua imagem àquilo que as massas mais desprezam (as fotos do Lula, pequenino e cheio de si, abraçando o imponente Artur Lira, quase me fazem vomitar!).
Quais as conclusões que podemos derivar de tais constatações?

A primeira é que Hebert Marcuse estava certíssimo no longínquo ano de 1964, quando em seu Ideologia da Sociedade Industrial previu que o consumismo e a lavagem cerebral da indústria cultural dariam um golpe de morte na esperança de irmos conscientizando aos poucos as massas para a revolução. 

Isto só funciona para quem ainda não foi mesmerizado e engolido pelo sistema. Sessenta anos depois fica claro que nos tornamos minoritários e é a partir daí que precisamos buscar formas de sobrevivermos politicamente, pois verdadeiros revolucionários não se deitam e esperam a morte chegar, lutam até o fim.

[Provavelmente isto não mudaria de forma decisiva o rumo dos acontecimentos, mas a obsessão do Lula em esvaziar a esquerda combativa e apostar todas as fichas petistas na conquista do poder ilusório conferido pelas urnas, desmobilizando a militância no vácuo entre uma eleição e outra, foi o principal erro de uma carreira repleta deles até a borda.]

E eis que, quando finalmente estamos prestes a nos ver livres do arquivilão Bolsonaro, percebemos que o golpe de misericórdia nessa direita que quer restabelecer, piorado, o capitalismo selvagem, continuará longe de ter sido dado. 

Alguém logo sucederá o palhaço assassino e, provavelmente não sendo maluco nem amarelão como o predecessor, deverá cumprir seu papel sem tanto estardalhaço mas com eficácia bem maior. 

Por que este pessimismo? Porque, desde o último ano em que a evolução do PIB brasileiro foi compatível com as necessidades de nosso país (2010, com 7,53%), enfileiramos desempenhos entre razoáveis e sofríveis, então o crescimento de 2,9% em 2023 ficou muito longe de representar o desafogo que a propaganda petista tenta nos impingir. Estávamos afundando com água até o queixo e agora o nível desceu para o pescoço. É motivo para espocarmos champanhe? 

Isto depois da saída de um presidente mentecapto sob quem os investidores não tinham a mais remota segurança para seus negócios e a posse do presidente conservador cuja afirmação mais emblemática sobre política econômica foi a de que os banqueiros nunca lucraram tanto quanto no seu governo. 

No início de 2023, eu previa um PIB de pelo menos 6%; não chegou nem à metade. Então, é compreensível o atual desencanto com o Lula3 e permanece a tendência de a agroindústria consolidar-se como o polo dinâmico da economia brasileira, alavancando a escalada política direitista. 

Com Bolsonaro varrido definitivamente da cena política (sua pena de prisão tende a ser bem longa, tal o volume de provas e depoimentos acumulados contra ele como golpista, afora o segundo ato que ainda virá, quando for apurada sua responsabilidade no extermínio em massa de brasileiros durante a pandemia!), é bem capaz de a direita se civilizar, passando a exercer sua dominação sem tamanhas maluquices e estridências. Elas não serão mais necessárias.

No entanto, ainda que tocado com luvas de pelica, o projeto dessa gente para o Brasil continuará sendo o mesmo: impor-nos a superexploração, dando um fim às ilusões de conciliação de classes e revivendo o anticomunismo grosseiro dos tempos da guerra fria. [Alô, Malafaia, é contigo que estou falando!]

E é aqui que deixo de estar em sintonia com o Safatle, pois o que ele propõe como resposta da esquerda aos desafios atuais são:
— platitudes retóricas de quem não tem um caminho das pedras para indicar ("Nossa tarefa seria criar o que ainda não existe, usando nossa imaginação política para identificar experiências onde elas estão e trazê-las para a constituição de um modelo");
— ou equivalem ao uso de estilingues para matar elefantes ("construção de processos de democracia direta, dinâmicas de autogestão e ocupação de fábricas, lutas contra modelos extrativistas", etc.).

Ocorre que, como o próprio Safatle afirma, "nunca as crises do capitalismo se demonstraram tão claramente imbrincadas num sistema de crises conexas: crise ecológica, política, social, econômica, demográfica, psíquica e epistêmica".

Ora, é exatamente a simultaneidade entre tais crises e a perspectiva de que elas se alimentem e alavanquem mutuamente que torna a situação atual mais ameaçadora do que qualquer outra que a humanidade já enfrentou. 

Para ficarmos apenas no que já morde nossos calcanhares:
— tudo indica que uma depressão econômica muito pior que a Grande Depressão do século passado se aproxima a passos largos;
— todas as previsões sobre o avanço do aquecimento global e das alterações climáticas têm sido ultrapassadas; e
 abominações como Donald Trump e Vladimir Putin reavivam nossos piores temores de guerras nucleares capazes de dizimar a espécie humana. 

Já pensaram no que acontecerá se a humanidade tiver de enfrentar ameaças tão terríveis ao mesmo tempo?

Concluindo: desde meados do século passado, quando caiu para a esquerda a ficha de que o proletariado industrial não será, de jeito nenhum, o sujeito de uma revolução nos moldes marxistas, várias tentativas de manter em pé as convicções antigas foram tentadas, em vão.

Primeiro foi afirmarem que a aristocracia operária realmente se deixara cooptar pelo capitalismo, mas o peão de fábrica continuava empunhando a bandeira vermelha. Mas, cadê o peão de fábrica que estava aqui? A tecnologia poupadora de mão-de-obra comeu.

Depois, houve quem proclamasse que o papel outrora atribuído aos operários industriais seria cumprido pelos assalariados de forma geral. Sem chance: são dispersos, não têm os mesmos interesses comuns e muitos deles já caíram na arapuca de se tornarem pessoas jurídicas.     

Marcuse sonhou com os marginalizados pelo sistema e os que dele se apartavam por escolha própria personificando, unidos, a esperança que restava. Mas, o exército da contracultura só durou até os EUA retirarem seus cowboys do Sudeste asiático e países próximos.

O saudoso Jacob Gorender colocava suas fichas no pessoal das ONGs, que, entretanto, nunca foi o titã Atlas para carregar o céu nas costas. E por aí vai.
Então, é por não sabermos com quem poderemos contar para comandar a revolução necessária que não conseguimos sequer definir uma estratégia viável para recuperarmos o terreno perdido nas últimas décadas.

E não nos ajuda o estado de espírito das massas, que querem mais é catarse, não soluções. Então, as fanfarronices desastrosas da extrema-direita lhes servem de compensação por terem sido conduzidos à insignificância e à impotência, sem sequer saberem identificar os verdadeiros inimigos e sem ânimo nem ousadia para reagir contra eles. 

E, como nosso compromisso é conduzirmos a humanidade a um estágio superior de civilização, não a fazermos regredir à Idade das Trevas, não podemos disputar espaço em tal palco com os bufões ultradireitistas. Dai aos bárbaros o que é dos bárbaros...  

Os que tentamos reconstruir a verdadeira esquerda nos deparamos com o que dela resta: voltou a um estágio tão embrionário que os voos mais altos são impensáveis em curto e médio prazos. Mas, algo ainda podemos definir, sim:
— temos de acumular forças com todo tipo de atividades que possamos desenvolver na contramão do sistema sem, contudo, partirmos desde já para os confrontos decisivos, pois 
não os conseguiremos vencer (o que não implica, contudo, deixarmos de responder às ações inimigas com reações de igual contundência, pois se apanharmos quietos, jamais inflamaremos as novas gerações, deixando-as entregues aos motoqueiros fantasmas da ultradireita);
— precisamos formar militantes capazes de aproveitar as janelas revolucionárias que tendem a existir cada vez mais nestes estertores do capitalismo. Pequenos contingentes combativos, disciplinados e cientes do que estão fazendo, podem ter peso decisivo em situações caóticas como as que virão doravante. Quem não é o maior, precisa tornar-se o melhor.

Encerro com um tema para reflexão: podemos dizer que a extrema-direita é revolucionária, se ela apenas conquista o poder para dele ser logo desalojada (já que tudo que propõe é insustentável e desperta imensa rejeição quando colocado em prática)?

No sentido marxista, não! Para o velho barbudo, uma revolução ocorria quando se dava uma ruptura com a velha ordem política, social e econômica, sendo, no seu lugar, estabelecidos novos padrões de relações sociais.

Mas, a ultradireita do século 21 nada estabelece de duradouro, apenas destrói um estágio menos execrável da dominação burguesa, abrindo caminho para outro, de desumanidade extremada. De hora em hora, o capitalismo praticado no Brasil piora. 

Atribuir dignidade revolucionária aos badernaços histriônicos dos Trumps e Bolsonaros, que têm mais a ver com entropia e niilismo, parece-me só uma provocação  de mau gosto.
(por Celso Lungaretti) 

sábado, 16 de março de 2024

A ELEGIBILIDADE DE TRUMP E A NATUREZA DA DEMOCRACIA BURGUESA

 

Pelo critério da Suprema Corte dos Estados Unidos e de Trump, Al Capone poderia ter sido Presidente dos Estados Unidos.  

Tenho me perguntado sobre as razões de grande parte da população prestar apoio a personagens como Donald Trump e Jair Bolsonaro, entre outros que poderiam ser citados, representantes assumidos do que há de mais perverso na relação social sob a égide da forma-valor, com defesas implícitas ou explícitas em suas ações de governo de teses retrógradas, quais sejam:  

- genocídio; 

- xenofobia nacionalista; 

- misoginia; 

- racismo supremacista; 

- razão da força contra a força da razão expressa em armamentos e despotismo político militarista direto ou indireto; 

- concentração, nas mãos de poucos, das riquezas abstrata e material produzidas coletivamente; 

- da intransigente e hipócrita defesa do feto quando não defendem a vida de imigrantes desesperados que arriscam a vida em arriscadas travessias, ou grandes contingentes de mortes por desnutrição e falta de assistência médica dos filhos de desempregados mundo afora - como agora em Gaza -, entre outras formas de exclusões sociais, etc., etc., etc. 

Se quisesse traduzir em poucas palavras a resposta à minha auto indagação diria que tal comportamento deriva de um fenômeno capitalista conhecido como fetichismo da mercadoria!   

As pessoas adoram as mercadorias porque são elas que se constituem, na era do capitalismo hegemônico - não há nenhum país do mundo que não tenha adorado a forma-valor como modo de relação social -, como aquilo que satisfaz as suas necessidades de consumo.  

Normalmente não se estabelece a diferença entre o objeto natural, que tem apenas valor de uso e é capaz de satisfazer a necessidade de consumo, e a mercadoria, que tem, concomitantemente, valor de uso e valor de troca, e é aí que reside o problema. 

Idolatram o dinheiro, a mercadoria das mercadorias, expressão da abstração forma-valor, a única mercadoria que não tem valor de troca em si, mas é capaz de comprar todas as outras mercadorias.  

Idolatram o que desconhecem.  

Se se pedir a qualquer transeunte anônimo que dê uma definição do dinheiro, objeto de sua idolatria e ao qual é obrigado à sua obtenção numa busca diária e permanente, quando muito ele poderá dizer - se for alguém com bom nível de escolaridade - que ele é apenas um benéfico facilitador das compras e vendas de mercadorias, ou seja, um mero instrumento, tal como um garfo ou uma colher na hora da refeição.  

Se se perguntar algo mais complexo, como e por que de uma cédula de R$ 10,00 comprar dez vezes menos mercadorias que uma cédula do mesmo tamanho de R$ 100,00, ele certamente dirá que é o governo quem assim o determina, e pronto.  

As pessoas em geral não entendem que o dinheiro, expressão materializada numericamente da abstração valor, é aquilo que promove e materializa a apropriação indébita pelo capital dele mesmo, num movimento tautológico e sem sentido de autorreprodução cumulativa ad infinitum, e que priva a pessoa assalariada e explorada do acesso integral à riqueza abstrata socialmente e coletivamente produzida, e consequentemente do acesso à riqueza material de que necessita.   

Portanto, o dinheiro, objeto sacral na sociedade capitalista, é um pernicioso estranho no ninho.  

Fiz essa digressão explicativa sobre o escravista móvel da relação social ao redor do mundo para dizer que, tal como o dinheiro, objeto de idolatria e desconhecimento, há um paralelo com a  a crença ingênua nas pessoas que se apresentam como salvadores da pátria do tipo Donald Trump e Jair Bolsonaro, que mais parecem encarnar na vida pública perante os seus eleitores o sonho dos apostadores da loteria almejando ganhar os milhões da mega sena.  

O Brasil está eleitoralmente divido entre o ilusionista genocida, a quem chamo de Boçalnaro, o ignaro, e o socialdemocrata Lula, como se fossem projetos antagônicos na essência constitutiva de base primária, quando na realidade não são.  

Não nos esqueçamos que sob a égide do capital, Hitler assumiu o poder pelo voto; Vladimir Putin, também, entre tantos outros. 

A direita resgata velhos temas liberalistas que nasceram com Adam Smith no século dezoito e vêm sendo reciclados com aparência de algo novo nesta fase de ocaso da lógica do capital, que iludem os conservadores, conscientes ou inconscientes, ávidos por uma volta ao passado que foi menos ruim do que o presente.  

A socialdemocracia de centro e de esquerda institucional tenta humanizar o capital nesta mesma fase e sem questionar a sua essência constitutiva predatória e escravista, provocando uma falsa dicotomia entre projetos politicamente diferenciados, mas similares quanto ao modo de produção social adotado, ambos subtrativos pelo capital da riqueza socialmente produzida.    

A direita se fortalece com a falta de respostas sociais de projetos de humanização do capital dos seus pretensos antagonistas justamente porque não se pode querer transformar Mefistófeles em Santo. 

O desconhecimento da essência da lógica do capital, até por quem se diz marxista, é o que faz muitos bem-intencionados da socialdemocracia e seus membros socialistas mais combativos a proporem soluções como a inexequível taxação dos grandes capitais empresariais, ou a estatização dos meios de produção para que seja o Estado o patrão de todos, entre outras proposições de cunho pretensamente humanistas, como se fosse possível alterar a essência feia de um monstro com intervenções cosméticas.  

Assim, o medo de péssimo impele à aceitação do ruim por alguns, e por outros à aceitação de propostas políticas conservadoras e anticivilizatórias, inconscientemente ou não.  

Romper com essa camisa de força em face da barbárie mundial e brasileira que se evidencia por conta do anacronismo de um modo de relação social que atingiu o estágio de obsolescência dos seus fundamentos básicos, não é uma tarefa fácil, e nem pode ser operada, como querem muitos, por ideias de harmoniosa convivência político-institucional com os opostos, como forma pretensamente moderna de superação dos problemas sociais. 

O resultado de tal tentativa “bem-intencionada” e pela via eleitoral, é que o faz com que figuras como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei, entre muitos outros mundo afora, se apresentem abertamente com armas em punho e defendam teses nacionalistas, xenófobas, racistas e supremacistas, misóginas, genocidas, elitistas, e recebam considerável apoio desavisados uns, e bem espertos outros.      

A nosso favor está a certeza de que se pode viver socialmente em paz, com a contribuição de todos de modo equânime, e sob a égide de um projeto social que busque a justa distribuição da produção social sob uma ordem horizontal de relação social.  (por Dalton Rosado)

quinta-feira, 14 de março de 2024

EXTREMA DIREITA É "REVOLUCIONÁRIA", ENQUANTO ESQUERDA BUSCA ADMINISTRAR MASSA FALIDA DO CAPITALISMO



Vladimir Safatle
 
Eu havia enunciado a tese da morte da esquerda pela primeira vez há quatro anos. Ela seguia uma análise que apresentei de forma mais sistemática em um livro de 2017 sobre os impasses da política brasileira, "Só Mais um Esforço", que foi posteriormente republicado em versão atualizada em 2022.

Na ocasião, o diagnóstico referia-se principalmente ao esgotamento do ciclo histórico da esquerda brasileira devido às contradições internas do lulismo, assim como a nossa nova posição de gestora preferencial do sistema de pactos e paralisias da Nova República.

Essas contradições diziam respeito a um modelo de desenvolvimento socioeconômico que procurava, a sua maneira, capitalizar os setores mais pobres da sociedade preservando os ganhos da elite rentista nacional e a dinâmica monopolista da economia brasileira.

No fundo, isso acabou por mostrar involuntariamente os limites de qualquer projeto de racionalização do capitalismo local. Limites esses que se referiam às contradições internas do modelo, sua incapacidade de realizar o que ele próprio prometia.

Mas com o tempo ficou cada vez mais evidente para mim que não se tratava de um diagnóstico sobre a esquerda local. Esse era apenas um caso, talvez o mais dramático, de um fenômeno global de colapso da esquerda mundial e de sua capacidade de transformação estrutural. De onde se seguiu então a defesa de uma morte da esquerda.
As greves do ABC mobilizavam milhões...

Desde a crise de 2008, a política mundial foi para os extremos. Os acordos de classe que produziram a democracia liberal, tal como ela apareceu após a Segunda Grande Guerra, com seus esboços de macro-estruturas de proteção social, não existem mais. As respostas globais à crise socioeconômica de 2008 apenas mostraram o aprofundamento de dinâmicas de concentração de renda e acumulação primitiva.

Nesse processo, vimos paulatinamente populações procurarem saídas de ruptura institucional como forma de reposta ao aumento da precariedade e da vulnerabilidade social. Uma análise honesta de situações concretas globais mostra que a política deixou de ser feita a partir da "conquista do centro".

O acirramento dos conflitos sociais devido ao aumento real da insegurança econômica foi o verdadeiro responsável por isso, e não alguma forma de "regressão" populista que cresceria a partir de um pretenso obscurantismo das massas, com suas explosões de ressentimento e ódio.

Esse inflacionamento do discurso psicológico na análise de fenômenos políticos apenas demonstra incapacidade crônica de setores do mundo acadêmico em encarar de frente impasses socioeconômicos reais.

Por isso, seria o caso de dizer que não há nem haverá mais centro. Atualmente, ou ele se move para a extrema direita, como vemos, por exemplo, na França de Macron, um laboratório mundial privilegiado da degradação do discurso centrista, ou quem fica no centro funciona apenas como uma barragem precária contra o retorno dos extremos, como estamos a ver nos EUA.

Nesse contexto, a pior coisa que pode acontecer é só existir um extremo ideologicamente organizado. No entanto, é isso que ocorre atualmente, e esse extremo é a extrema direita. Para existir, a esquerda precisaria fazer um movimento similar, o que ela se recusa por acreditar na viabilidade de ser gestora de um "centro democrático" simplesmente inexistente.

Insistiria nesse ponto diante das colocações de Fábio Palácio a respeito das frentes amplas contra a extrema direita. Em todo lugar onde elas foram implementadas, não duraram ou levaram, ao final, a um paradoxal fortalecimento do que combatiam. Nessa situação, a extrema direita joga em um jogo perfeito, onde mobiliza o discurso do homem simples contra a casta política.
...já hoje, Lula não quer mobilizar ninguém, 
só quer votos. 

Ao final, por mais que nossas vitórias sejam pontuais, a extrema direita retorna. Exemplo pedagógico aqui foi fornecido pela Itália, com suas frentes amplas contra Berlusconi, depois contra Salvini e, por fim, sem força para impedir a ascensão de um governo ligado ao fascismo histórico e comandado por Giorgia Meloni.

CRISES INGERENCIÁVEIS

Por isso, acho também bastante sintomáticas as posições defendidas por Celso Rocha de Barros em seu artigo. Primeiro, seria o caso de esclarecer que não se trata de reeditar, pela enésima vez, o debate sobre reforma e revolução. Já escrevi várias vezes sobre a inanidade da dicotomia.

A questão é outra e diz respeito ao desaparecimento de um "pensamento longo", do comprometimento real com um horizonte de expectativas - como lembra bem Paulo Arantes - que possa forçar continuamente o campo do que aparece como possível.
Vivemos em um mundo no qual a esquerda nos propõe a luta diária em defesa de conquistas de décadas que quase desapareceram, enquanto a extrema direita, como vimos na Argentina, começa o governo apresentando 600 medidas econômicas para mudar estruturalmente o estado e a economia.

Ou seja, enquanto jogamos o jogo da conservação das pretensas conquistas de décadas, a extrema direita aparece como força revolucionária. Eu realmente acho prudente perguntar onde isso vai terminar.

De toda forma, o artigo de Celso Barros tem a virtude de colocar efetivamente o problema onde ele está. Creio que tal retração é fruto da crença de devermos aprender a gerir as crises do capitalismo, pois não haveria nenhum modelo de socialismo minimamente pronto para ser implementado sem risco de derivas autoritárias. Da minha parte, eu não teria formulação melhor para descrever o que entendo por morte da esquerda.
Enquanto a extrema-direita 
é "revolucionária"...

Afirmo isso porque, se sobrou à esquerda gerir as crises do capitalismo, a única coisa que posso dizer é: melhor estocar lenços de papel, pois só nos restará choro e ranger de dentes.

A posição de Celso Barros pode parecer realista, mas é a mais irrealista que consigo imaginar. Uma perspectiva de esquerda mais consequente consistiria em assumir que essas crises são simplesmente ingerenciáveis. A esquerda nunca se viu como gestora de crise do capitalismo por saber que a crise é a forma normal de governo e de acumulação do capitalismo.

Como se não bastasse, estamos falando de uma crise de outra natureza. Nunca as crises do capitalismo se demonstraram tão claramente imbrincadas em um sistema de crises conexas: crise ecológica, política, social, econômica, demográfica, psíquica e epistêmica.

Há mais de 50 anos sabíamos que algo dessa natureza iria ocorrer. Só para lembrar um dado, no começo dos anos 1970, um grupo de economistas organizados no Clube de Roma publicou um relatório intitulado "Os Limites do Crescimento", no qual alertava que a dinâmica de crescimento exponencial do capitalismo levaria ao colapso e à instabilidade de todo o sistema.

Celso Furtado, em um de seus trabalhos absolutamente geniais, "O Mito do Desenvolvimento Econômico", tirou as consequências dessa situação: a ideia de sociedades periféricas participarem do mesmo grau de desenvolvimento de sociedades do capitalismo central é um mito. O modelo não pode ser exportado em escala global sem inviabilizar todo o sistema. Lembro-me desse debate no livro que lancei agora.

Ou seja, essa crise conexa que então se anunciava e que agora se tornou realidade não pode ser resolvida nos marcos do próprio sistema que a gerou. Até porque esse sistema não mudará seu princípio de desenvolvimento e progresso, ele não mudará seu regime de acumulação e de produção de valor.

Antes, ele vai aprofundar essa mesma lógica suicida, levando ao extremo suas duas maiores ilusões: a crença no caráter inesgotável de extração de valor da terra e do trabalho.
...a esquerda quer administrar a massa falida do 
capitalismo. 

Vimos isso com a transformação do Brasil em fronteira global fundamental para a devastação ecológica e para a consequente produção de valor a partir da terra. E vimos o mesmo processo através da brutalização das condições de trabalho e do colapso psíquico de nossa população, com suas taxas recordes mundiais de depressão (13,5%) e de transtornos de ansiedade (9,7%).

Nesse sentido, usar a ausência de modelos de socialismo minimamente prontos para justificar nossa inação me parece uma proposição desprovida de sentido. Modelo não é algo que cai do céu ou dá em árvore. Ele é fruto de processos concretos de governo e de generalização de lutas.

Também não havia modelo de governo algum minimamente pronto no começo do século 20, e isso não impediu ninguém de avançar. Nossa tarefa seria criar o que ainda não existe, usando nossa imaginação política para identificar experiências onde elas estão e trazê-las para a constituição de um modelo.

Em várias partes do mundo, tentam-se saídas - construção de processos de democracia direta, dinâmicas de autogestão e ocupação de fábricas, lutas contra modelos extrativistas -, mas a classe intelectual brasileira acredita ser melhor não forçar nossos governos.

Na verdade, diria que estamos tentando gerenciar as crises do capitalismo desde o começo do ciclo dos governos de esquerda no Brasil. Faço minha as teses de Fabio Barbosa dos Santos e Daniel Feldmann para dizer que o máximo que se consegue, nesse caso, é acelerá-las.

Os resultados limitados, feitos para serem limitados, aumentam em médio prazo a insegurança de boa parte das classes populares, pois as levam a acreditar momentaneamente em uma promessa de ascensão social que se mostrará frágil. A extrema direita se alimenta dessa frustração real, e ganharíamos muito mais se analisássemos sua força a partir das frustrações reais produzidas por nossos governos. (Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

terça-feira, 12 de março de 2024

ERAM ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS. É A ELES QUE DEVEMOS A COLÔNIA CECÍLIA – 2

MEIO SÉCULO ANTES DO SAUDOSO RAUL SEIXAS NASCER, JÁ SE TENTARA CRIAR NO BRASIL UMA SOCIEDADE ALTERNATIVA 
O filme La Cecilia (d. Jean-Louis Comolli, 1975) resgata um episódio histórico pouco conhecido entre nós, embora aqui transcorrido: a implantação de uma colônia rural no Paraná, por parte de anarquistas italianos.

Foi a concretização de um sonho há muito acalentado por Giovanni Rossi, conforme ressaltou a historiadora Izabelle Felici

"A personagem do fundador da Cecília é indissociável da história da colônia. Toda a sua atividade política gira em torno de um projeto de vida comunitária. 

Desde a sua adesão à Internacional, em 1873, aos 18 anos de idade, Giovanni Rossi propôs um projeto de vida comunitária na Polinésia. 

Os numerosos artigos que ele apresentou na imprensa italiana, anarquista e socialista, os apelos que ele lançou às associações, federações, partidos, suscetíveis, a seus olhos, de ajudá-lo, tinham todos por objetivo expor seu projeto de comunidade ou, após 1890, apoiar a experiência em curso no Brasil. 

Com o mesmo objetivo de propaganda, Rossi funda, além disso, seu próprio jornal, Lo Sperimentale, em 1886. Ele desenvolve igualmente seu projeto de comunidade num romance utópico, Un Comune Socialista, no qual a personagem feminina tem por nome Cecília".

O experimento durou cerca de quatro anos, entre 1890 e 1893. Houve muito entusiasmo no início, mas depois foram aflorando os problemas que acabariam levando à extinção da colônia. Eis alguns:

— a contribuição desigual de citadinos e camponeses, pois a produtividade dos primeiros era inferior. Deveriam receber a mesma fração dos frutos do trabalho, conforme os ideais igualitários? Isto não significaria uma espécie de proletarização dos que produziam mais por estarem acostumados a lidar com a terra? De outra parte, se os lavradores fossem melhor aquinhoados do que os outros, não estaria sendo reproduzida a escala de valores da sociedade burguesa? Inexistia uma solução que contentasse a todos;

— a dificuldade de lidarem, no dia a dia, com o conceito do amor livre, uma novidade que incomodava principalmente as colonas de origem camponesa;

— 
a absoluta falta de seriedade do Estado brasileiro, que já era patético décadas antes de De Gaulle o haver constatado. O imperador Pedro II, atendendo a pedido do músico Carlos Gomes, doou as terras para a instalação da Cecília, mas, proclamada a República, o seu ato foi sumariamente revogado e os colonos tiveram de pagar pelas terras com parte de sua colheita e trabalhando sem remuneração em obras do governo;

— a hostilidade dos moradores da região (por sentirem-se prejudicados pela concorrência) e de uma vizinha comunidade polonesa, católica e conservadora;

— as fases de escassez e de fome, com a consequente ocorrência de doenças causadas pela desnutrição (problemas passageiros, que, contudo, reforçaram a tendência ao egoísmo por parte dos menos convictos dos ideais anarquistas, gerando desgastantes divisões); e

— a tentativa do governo de recrutar os colonos (italianos!!!) para combaterem a Revolução Federalista, o que, inclusive, contrariava seus ideais, pois simpatizavam com os revoltosos.

A Cecília chegou a ter 250 moradores e não deixaram de ocorrer defecções em massa, contrabalançadas pela chegada de novas levas de voluntários, atraídos pela divulgação nos círculos libertários europeus.

Alguns desistentes migraram para Curitiba, onde fundaram a Sociedade Giuseppe Garibaldi.
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POR QUE A HISTÓRIA DA COLÔNIA CECÍLIA
NÃO FOI CONTADA NUM FILME BRASILEIRO?

O filme francês conta esta rica história de forma dramatizada e com óbvia simpatia pela causa

O diretor Comolli (1941-2022), também crítico de cinema e de jazz, fez mais de 40 filmes entre 1968 e 2019, geralmente com posicionamento anarquista e/ou anti-stalinista. Foi editor-chefe do Cahiers do Cinema de 1966 a 1971, a fase mais politizada desta influente publicação.

Vale destacar que o elenco, cuja única cara familiar ao público brasileiro é a do ótimo Vittorio Mezzogiorno (No coração da montanhaO processo do desejoTrês irmãos), deu perfeita conta do recado.

Particularmente, eu preferiria uma abordagem menos convencional – como, p. ex., a que o cineasta suíço Alain Tanner deu aos ideais de 1968 no seu extraordinário Jonas, que terá 25 anos no ano 2000

Mas, sendo tão raras as produções que enfocam episódios históricos ligados às bandeiras da esquerda, temos mais é de incentivar filmes como este, recomendando a todos que o prestigiem, discutam e divulguem...

Chega a ser chocante que, em meio a tanta tralha produzida no Brasil, ninguém haja realizado um filme sobre a Colônia Cecília, nem sobre a importantíssima greve geral de 1917. 
   
Antes mesmo das trevas que desabaram sobre nós em 2019, já existiam assuntos malditos para nosso cinema, como os relativos a episódios libertários (não confundir com o uso fake que está sendo dado a esta palavra pelos liberticidas ultradireitistas), às lutas por justiça social e às possibilidades eróticas inaceitáveis para as pessoas reprimidas. 

E, claro, nada mudou significativamente com a volta do Lula ao poder, já que sua simpatia pela esquerda combativa sempre foi e é cada vez mais... nenhuma! O máximo que ele almeja é um capitalismo que assopre com mais força para mitigar nossa dor, depois de nos morder impiedosamente. (por Celso Lungaretti)
O projeto era ótimo; Rossi deveria tê-lo tentando noutro país.
Observações: esta duologia junta duas pautas que vieram por si sós ao meu encontro. Interessei-me pela greve geral de 1917 porque ela nasceu no cotonifício Crespi, em cujas dependências meu pai trabalhou 46 anos consecutivos (primeiro na tecelagem e depois, que ela faliu, em empresas menores que alugaram sua dependências). 

Nem na memória dele, que lá começou a trabalhar em 1930, nem na do bairro da Mooca a greve ainda era tema de conversas, o que me fez querer saber o porquê.

Já a Colônia Cecília  tinha, obviamente muitos pontos de contato com a comunidade alternativa da qual participei após sair das prisões militares, e que foi fundamental para eu superar os traumas da tortura e a amargura de constatar que nada mais restava a fazer para tentarmos impedir o prolongamento indefinido das trevas ditatoriais. 

Acreditando que venceria ou morreria, não estava preparado para aguentar a paz dos cemitérios naquela terra arrasada, ao lado de um povo acovardado. 

Mas, as poucos percebi que sobrara um desafio importante: seríamos capazes de viver realmente como irmãos solidários, a partir de laços ideológicos e não de sangue? Nossa sociedade alternativa em miniatura sobreviveria à do Raulzito

Tudo estava contra nós e a nossa comuna também durou pouco, mas houve momentos nos quais deu para perceber que, sim, em circunstâncias mais propícias teríamos conseguido. 

Viver em fraternidade é muito melhor do que ser movido pela ganância, competindo ferozmente com iguais por uma salvação cada vez mais duvidosa.  

Senti que o homem novo com que tanto sonhávamos em 1968 habitava em nosso interior. E é esta a nossa esperança de salvação nos tempos terríveis que estão à nossa espreita adiante, quando a debacle definitiva do capitalismo somar-se à devastação das alterações climáticas. (CL) 
Raulzito numa performance ousada de "Metamorfose ambulante"

segunda-feira, 11 de março de 2024

ERAM ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS. É A ELES QUE DEVEMOS A GREVE GERAL DE 1917 – 1

Em 1968 o anarquismo ressurgiu triunfalmente na cena política, com suas bandeiras negras tremulando nas barricadas parisienses.

Foi só então que caiu, para as novas gerações de revolucionários, a ficha de quão importante a greve geral de 1917 havia sido para as lutas sociais brasileiras.

É que ela permanecera por meio século subdimensionada ou mesmo omitida pela historiografia comunista, que, mesquinhamente, evitava levar água para o moinho da concorrência.

O impacto foi ainda maior para mim por ter tomado conhecimento de que o movimento se iniciara no Cotonifício Rodolfo Crespi, no qual meu pai trabalhara de 1930 até a desativação e desmembramento em 1963, além de permanecer como empregado, até 1976, de firmas menores que lá se estabeleceram. 

Quando o grande cotonifício ainda existia, eu cheguei a visitá-lo com meu pai. Para minha surpresa, constatei depois que o congênere italiano mostrado no filme Os Companheiros, ambientado no final do século retrasado, era quase idêntico. Ou seja, a fábrica daqui parecia uma cópia da europeia de seis décadas antes!

Percebendo quão minimizada tinha sido a greve de 1917 pelos
historiadores camaradas (o duplo sentido é intencional!), acabei me interessando também pelo outro grande marco da atuação anarquista no Brasil, a Colônia Cecília. Daí a minha decisão de escrever sobre ambas. Memória não morrerá!
(CL)


A HEROICA GRANDE GREVE NA QUAL MORRERAM
DEZENAS DE OPERÁRIOS, MAS ACABOU VITORIOSA! 

Fundado em 1897, o cotonifício Crespi ocupava um enorme quarteirão da zona leste paulistana, tendo se constituído num dos principais marcos da industrialização de São Paulo.

Entrou também para nossa História como o palco onde se iniciou e do qual se irradiou a primeira greve geral brasileira, a de 1917, cuja magnitude foi durante longo tempo minimizada pela historiografia comunista, por puro sectarismo (fora organizada e encabeçada por anarquistas).

Quanta pequenez! Havia sido não só uma iniciativa pioneira, heroica e vitoriosa, como tinha custado a vida de valorosos lutadores do nosso proletariado nascente. Embora só um mártir seja lembrado até hoje, as vítimas fatais podem ter sido cerca de 100 (segundo o jornal Fanfulla, ligado ao consulado italiano) e, certamente, não menos do que 18 (o número em que O Estado de S. Paulo se fixou). Apenas operários; os carrascos saíram incólumes, como sempre...  
O Crespi chegaria a ter 50 mil m2 construídos

Os aspectos mais sangrentos da greve de 1917 eram voz corrente no movimento operário do início do século passado, mas foram apagados da memória do país. 

Um dos historiadores que os resgataram,  o pesquisador e jornalista José Luís Del Roio, teve seu livro Greve de 1917: os trabalhadores entram em cena lançado pela Alameda Editorial quando transcorria o centenário do episódio. Segundo ele, o Fanfulla noticiou também que existiriam 212 covas abertas no cemitério do Araçá para receber os grevistas (pretendiam matar tantos assim?).

Eis um ótimo texto de apresentação que ele fez do seu trabalho.
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"Um protesto iniciado numa tecelagem, no bairro paulistano da Mooca, há um século, marcou definitivamente a luta dos trabalhadores em nosso país.

As condições de vida eram tremendamente precárias. Não havia leis trabalhistas, não havia garantias para as mulheres e o trabalho infantil era regra, por ser mais barato e mais fácil de controlar.
O livro de Zélia Gattai
inspirou minissérie de TV

Numa conjuntura de guerra, crise econômica e carestia, a inquietação localizada se espalhou. O patronato respondeu com os argumentos de sempre: pau, bala e demissões. Mas, daquela vez, a agressão não funcionou. A revolta se espalhou por outras fábricas e pelo comércio. 

Quando os bondes pararam, São Paulo parou junto. Multidões tomaram as ruas, em cenas inéditas até então. Para a oligarquia, plantada em seus casarões da Avenida Paulista e no bairro de Higienópolis, a visão foi aterradora. Dezenas de milhares daqueles considerados feios, sujos e malvados surgiram à luz do dia, entre junho e julho de 1917, para cobrar uma participação mínima por sua contribuição ao desenvolvimento. 

Nem mesmo a brutalidade oficial deteve aquela gente munida de impulsos terríveis: o desejo de matar fome, ter teto e contar com condições para criar os filhos. A pressão das ruas foi tamanha que os ricos tiveram de ceder. A demanda por salários e melhores condições de vida e trabalho acaba espetacularmente vitoriosa".

Aproveito para citar também o ótimo verbete da Wikipedia (sei que muitos torcem o nariz para a dita cuja, mas a qualidade do texto em questão, eminentemente noticioso, é indiscutível).
"Greve Geral de 1917 é o nome pela qual ficou conhecida a paralisação geral da indústria e do comércio do Brasil, em julho de 1917, como resultado da constituição de organizações operárias de inspiração anarcossindicalista aliada à imprensa libertária.

Esta mobilização operária foi uma das mais abrangentes e longas da história do Brasil.
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CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO – Com o início da 1ª Guerra Mundial, o Brasil tornou-se exportador de gêneros alimentícios aos países da Tríplice Entente; essas exportações se aceleraram a partir de 1915, reduzindo a oferta de alimentos disponíveis para o consumo interno, e provocando altas em seus preços.

Entre 1914 e 1923, o salário havia subido 71% enquanto o custo de vida havia aumentado 189%; isso representava uma queda de dois terços no poder de compra dos salários. 
"O trabalho infantil era generalizado"

Para salário médio de um operário de cerca de 100 mil réis correspondia um consumo básico que para uma família com dois filhos atingia a 207 mil réis. O trabalho infantil era generalizado.
'…a greve geral de 1917 não pode, de maneira alguma, ser equiparada sob qualquer aspecto que seja examinada, com outros movimentos que posteriormente se verificaram como sendo manifestações do operariado. Isso não, absolutamente não! 
A greve geral de 1917 foi um movimento espontâneo do proletariado sem a interferência, direta ou indireta, de quem quer que seja. Foi uma manifestação explosiva, consequentemente de um longo período da vida tormentosa que então levava a classe trabalhadora. 
A carestia do indispensável à subsistência do povo trabalhador tinha como aliada a insuficiência dos ganhos; a possibilidade normal de legítimas reivindicações de indispensáveis melhorias de situação esbarrava com a sistemática reação policial; as organizações dos trabalhadores eram constantemente assaltadas e impedidas de funcionar; os postos policiais superlotavam-se de operários, cujas residências eram invadidas e devassadas; qualquer tentativa de reunião de trabalhadores provocava a intervenção brutal da Policia. 
A reação imperava nas mais odiosas modalidades. O ambiente proletário era de incertezas, de sobressaltos, de angústias. A situação tornava-se insustentável.' [Edgard Leuenroth, em artigo na imprensa]
PARALISAÇÃO
 – Em 1917 houve uma onda de greves iniciada em São Paulo em duas fábricas tenteis do Cotonifício Rodolfo Crespi e, obtendo a adesão dos servidores públicos, rapidamente se espalhou por toda a cidade, e depois por quase todo o país. Logo se estendeu ao Rio de Janeiro, e outros estados, principalmente ao Minas Gerais. 

Foi liderada por elementos de ideologia anarquista, dentre eles vários imigrantes italianos. Os sindicatos por ramos e ofícios, as forças e uniões operárias, as federações porcentuais, e a Confederação Operária Americana (fundada em 1756) sofriam forte influência dos anarquistas.
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A MORTE DE JOSÉ MARTINEZ – Em 9 de julho, uma carga de cavalaria foi lançada contra os operários que protestavam na porta da fábrica Mariângela, no Brás; resultou na morte do jovem anarquista espanhol José Martinez. Seu funeral atraiu uma multidão que atravessou a cidade acompanhando o corpo até o cemitério do Araçá onde foi sepultado. 

Indignados e já preparados para a greve, os operários da indústria têxtil Cotonifício Crespi, com sede na Mooca, entraram em greve, e logo foram seguidos por outras fábricas e bairros operários. Três dias depois mais de 70 mil trabalhadores já haviam aderido à greve. Armazéns foram saqueados, bondes e outros veículos foram incendiados e barricadas foram erguidas em meio às ruas.
'O enterro dessa vitima da reação foi uma das mais impressionantes demonstrações populares até então verificadas em São Paulo. Partindo o féretro da rua Caetano Pinto, no Brás, estendeu-se o cortejo, como um oceano humano, por toda a avenida Rangel Pestana até a então Ladeira do Carmo em caminho da cidade, sob um silencio impressionante, que assumiu o aspecto de uma advertência.  
Foram percorridas as principais ruas do centro. Debalde a Policia cercava os encontros de ruas. A multidão ia rompendo todos os cordões, prosseguindo sua impetuosa marca até o cemitério. À beira da sepultura revezaram os oradores, em indignadas manifestações de repulsa à reação... 

No regresso do cemitério, uma parte da multidão reuniu-se em comício na Praça da Sé; a outra parte desceu para o Brás, até à rua Caetano Pinto, onde, em frente à casa da família do operário assassinado, foi realizado outro comício'[relato de Edgard Leuenroth, em reportagem publicada pelo jornal Dealbar] 

EXIGÊNCIAS
 – A violenta greve geral estava deflagrada em São Paulo. 
Hermínio Linhares, em seu livro Contribuição à história das lutas operárias no Brasil, diz: 
'O auge deste período foi a greve geral de julho de 1917, que paralisou a cidade de São Paulo durante vários dias. 

Os trabalhadores em greve exigiam aumento de salário. 

O comércio fechou, os transportes pararam e o governo impotente não conseguiu dominar o movimento pela força. 

Os grevistas tomaram conta da cidade por trinta dias. Leite e carne só eram distribuídos a hospitais e, mesmo assim, com autorização da comissão de greve. O governo abandonou a capital'

As ligas e corporações operárias operárias em greve, juntamente com o Comitê de Defesa Proletária, definiram na noite de 11 de julho 11 tópicos contendo suas reivindicações.
Ficha policial de Edgard Leuenroth
  1. que sejam postas em liberdade todas as pessoas detidas por motivo de greve;
  2. que seja respeitado do modo mais absoluto o direito de associação para os trabalhadores;
  3. que nenhum operário seja dispensado por haver participado ativa e ostensivamente no movimento grevista;
  4. que seja abolida de fato a exploração do trabalho de menores de 14 anos nas fábricas, oficinas etc.;
  5. que os trabalhadores com menos de 18 anos não sejam ocupados em trabalhos noturnos;
  6. que seja abolido o trabalho noturno das mulheres;
  7. aumento de 35% nos salários inferiores a $5000 e de 25% para os mais elevados;
  8. que o pagamento dos salários seja efetuado pontualmente, cada 15 dias, e, o mais tardar, 5 dias após o vencimento;
  9. que seja garantido aos operários trabalho permanente;
  10. jornada de oito horas e semana inglesa [oito horas diárias de 2ª a 6ª feira e quatro horas nos sábados];
  11. aumento de 50% em todo o trabalho extraordinário.
Cavalarianos intimidando grevistas na rua
NEGOCIAÇÕES
 – Cerca de 70 mil pessoas aderiram ao movimento. Para defender a greve foi organizado o Comitê de Defesa Proletária, que teve Edgard Leuenroth como um dos principais líderes.
'A situação ia se tornando cada vez mais grave com os choques entre a policia e os trabalhadores. O Comitê de Defesa Proletária, somente vencendo toda a sorte de dificuldades conseguia realizar apressadas reuniões em pontos diversos da cidade, às vezes sob a impressão constrangedora do ruido de tiroteios nas imediações. 
Tornava-se indispensável um encontro dos trabalhadores, para ser tomada uma resolução decisiva. Surgiu, então, a sugestão de um comício geral. Como e onde? E como vencer os cercos da Policia? Mas a situação, que se desenrolava com a mesma gravidade, exigia a sua realização. 
O perigo a que os trabalhadores se iriam expor estava sendo transformado em sangrenta realidade nos ataques da policia em todos os bairros da cidade, deles resultando também vitimas da reação, inúmeros operários, cujo único crime era reclamarem o direito à sobrevivência. 
E o comício foi realizado. O Brás, bairro onde tivera inicio o movimento, foi o ponto da cidade mais indicado, tendo como local o vasto recinto do antigo Hipódromo da Mooca.

Foi indescritível o espetáculo que então a população de São Paulo assistiu, preocupada com a gravidade da situação. De todos os pontos da cidade, como verdadeiros caudais humanos, caminhavam as multidões em busca do local que, durante muito tempo, havia servido de passarela para a ostentação de dispendiosas vaidades, justamente neste recanto da cidade de céu habitualmente toldado pela fumaça das fábricas, naquele instante, vazias dos trabalhadores que ali se reuniam para reclamar o seu indiscutível direito a um mais alto teor de vida. 

Não cabe aqui a descrição de como se desenrolou aquele comício, considerado como uma das maiores manifestações que a história do proletariado brasileiro registra. Basta dizer que a imensa multidão decidiu que o movimento somente cessaria quando as suas reivindicações, sintetizadas no memorial do Comitê de Defesa Proletária, fossem atendidas.' [notícia na imprensa]

Everardo Dias, em 
História das Lutas Sociais no Brasil, relata dessa forma os acontecimentos:
'São Paulo é uma cidade morta: sua população está alarmada, os rostos denotam apreensão e pânico, porque tudo está fechado, sem o menor movimento. Pelas ruas, afora alguns transeuntes apressados, só circulavam veículos militares, requisitados pela Cia. Antártica e demais indústrias, com tropas armadas de fuzis e metralhadoras. 
Há ordem de atirar para quem fique parado na rua. Nos bairros fabris do Brás, Moóca, Barra Funda, Lapa, sucederam-se tiroteios com grupos de populares; em certas ruas já começaram fazer barricadas com pedras, madeiras velhas, carroças viradas. A polícia não se atreve a passar por lá, porque dos telhados e cantos partem tiros certeiros. 
Os jornais saem cheios de notícias sem comentários quase, mas o que se sabe é sumamente grave, prenunciando dramáticos acontecimentos'[declarações de Fernando Dannemann]
"Os patrões deram aumento imediato de salário e prometeram estudar as demais exigências" 
RESOLUÇÃO DA GREVE – Os patrões deram um aumento imediato de salário e prometeram estudar as demais exigências. A grande vitória foi o reconhecimento do movimento operário como instância legítima, obrigando os patrões a negociar com os proletários e a considerá-los em suas decisões. 
'Na primeira reunião foi examinado o memorial das reivindicações dos trabalhadores, apresentado pelo Comitê de Defesa Proletária, que a comissão de jornalistas estava encarregada de levar ao governo do Estado. 

A segunda reunião teve o seu inicio retardado, em virtude da prisão de dois dos membros do comitê de Defesa Proletária ao saírem da redação, após a primeira reunião. 

Os entendimentos seriam rompidos se esses dois elementos não fossem imediatamente postos em liberdade. Essa resolução foi transmitida ao presidente do Estado. A exigência foi atendida, os elementos levados à redação e a reunião pôde ser realizada com breve duração, pois o governo ainda não havia entregue a sua resolução. 

A resolução da concessão das reivindicações dos trabalhadores foi dada por intermédio da Comissão de Jornalistas, com a informação de que já estavam sendo libertados os operários presos durante o movimento. Foram realizados comícios dos trabalhadores em vários bairros para a decisão da retomada do trabalho, que se iniciou no dia imediato. 

São Paulo reiniciava suas atividades laboriosas. A cidade retomava o seu aspecto costumeiro, restando, entretanto, a triste lembrança das vitimas que haviam deixado lares enlutados.' [relato de Edgard Leuenroth, em reportagem publicada pelo jornal Dealbar]" 

 
Clássico italiano sobre greve no final do século 19 em Turim: a
tecelagem é quase idêntica ao Crespi que conheci na década de 1960 
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